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Proclamar Libertação – Volume 2
Prédica: 1 Coríntios 7.29-32a
Autor: Werner Fuchs
Data Litúrgica: Dia do Trabalho
Data da Pregação: 01/05/1977
Tema: Dia do Trabalho

 

I

Conjeturado há meses por jornalistas e economistas, cercado de mistério pelos órgãos governamentais, ansiosamente esperado pelo povo, e finalmente revelado por uma instância suprema, o percentual de aumento do salário mínimo recebe cunho escatológico. Empresários e investidores, por um lado, dele esperam segurança e estabilidade para suas fontes de lucro. Inúmeros assalariados, por outro, anseiam pelo seu poder de multiplicar os pães de cada dia ou aliviar o fardo do aluguel e das prestações do televisor.

O advento do novo salário, no entanto, não reverte em evento salvífico. Não acompanha o ritmo da inflação, nem barra o aumento do custo de vida. Não faz justiça ao trabalhador, nem dignifica o suor do seu rosto. Não impede que o sustento da família citadina retorne cada vez mais ao regime de subsistência do minifúndio: até filhos em idade escolar precisam trabalhar. Nem pratica as proezas socializantes de valer os pobres e nivelar classes sociais: quem percebe salário vinculado, p. ex., a dez salários mínimos, a cada 1º de maio se distancia mais do operário de remuneração mínima.

Convém não se deixar ludibriar pela retórica dos avantajados. Afinal, política salarial é apenas um músculo menor do corpo felino da conjuntura econômica.

 

II

O homem tem em suas mãos a sua salvação e sua dignidade enquanto se declarar responsável. É preciso trabalhar, a gente se salva por acréscimo. Sartre.

Quando os meios de produção pertencem à sociedade…, o homem inicia a libertar-se da situação opressora em que vê o trabalho somente como meio de satisfazer suas necessidades animais. Começa a reconhecer-se a si mesmo através de seu trabalho e a compreender sua magnitude humana através do objeto criado, do trabalho realizado…, poder humano que é vendido e que já não lhe pertence mais. Agora, porém, o trabalho torna-se extensão dele mesmo, uma contribuição à vida da comunidade, a realização plena do seu dever social… Ele não mais tratará, como no passado, de libertar–se da alienação por meio da arte e da cultura. (No passado) ele morria durante oito ou mais horas, cada dia, para (durante o tempo livre) ser ressuscitado através de sua criatividade espiritual.

Na nova sociedade, a consciente participação do Homem em todos os mecanismos de produção e direção, refletir-se-á concretamente em seu assenhorear-se de sua própria natureza, através do trabalho libertado, e na expressão de sua própria condição humana através da arte e da cultura. Ernesto Guevara.

Deus de modo algum ordena que se deve trabalhar por trabalhar. O próprio fato de que Deus ordena algo, indica para o critério predominante: quando se cumpre essa ordem, serve-se a Deus. É nisso e não no sucesso que a princípio se mede o valor do trabalho. Wolfgang Schweitzer , op. cit., p.107.

Cumpre ao cristão encarar o ‘peso do dia e do calor’ da vida operária, como condição normal de quem vive a renúncia evangélica, com espírito de sacrifício, e procurando, com os sofrimentos que suporta, ‘completar o que lhe cabe na paixão de Cristo’, pois ‘na medida em que participais dos sofrimentos de Cristo, alegrai-vos…’ (1 Pe 4,13). Cristo quer ser operário e pobre para melhor revestir a condição humana e nela sofrer para que aprendêssemos que sem sofrimento não há redenção. D. Geraldo M. M. Penido, cei 114, maio/76.

Qual será a mensagem válida neste dia do trabalho? Menosprezar os preguiçosos e, assim, incentivar a ganância? Condenar o espírito ascético dos que vivem para trabalhar? Acordar do fatalismo os que trabalham para sobreviver? Incutir espírito de sacrifício e vocação messiânica em quem está sendo estraçalhado pelas leis econômicas? Enaltecer o homem realizador e livre? Apelar para tiradas teístas de uma ordem divina ao trabalho? Sonhar com facilidades e qualidades do trabalho numa sociedade futura? Cair numa teologia lúdica e escapista? Cultivar a crítica à sociedade tecnificada? Chamar ao bom-senso e ao realismo?

Uma mensagem cristã, para ser libertadora, não pode publicar dogmas, radicalizações, idealismos ou adequações ao estado vigente. Para dentro da problemática levantada pela ocasião concreta, cabe-lhe trazer primordialmente uma reflexão ética fundamental: delinear a base e as características do posicionamento cristão no mundo, esclarecer a natureza das relações e ações de pessoas e comunidades colocadas sob o senhorio de Cristo. Desse modo tornar-se-á também inteligível a instrução para uma situação específica.

 

III

O contexto maior de 1 Coríntios 7, 29-32a inicia em 7,1, trazendo respostas e conselhos do apóstolo à comunidade. Ela perguntara sobre a relação do cotidiano com a nova vida em Cristo. Na questão de casamento e celibato, Paulo não recomenda mudanças no estado civil, embora conceda exceções: casamento para os abrasados (v.9) e divórcio para possibilitar a paz (v.15). Como regra geral, cada cristão deve permanecer naquela posição social em que se encontrava ao ser atingido pela vocação de Deus, que o liberta de escravizações (vv.17-24). Por causa da angustiosa situação presente (v.26), o solteiro pode melhor cuidar de como agradar ao Senhor (v.32b), mas o que se casa, não comete pecado (v.36).

Tradução:

v.29 -Digo-lhes isto, irmãos: o tempo é breve.
Doravante, quem tem esposa, viva como se não a tivesse;

v.30 – quem chora; como se não chorasse;
quem se alegra, como se não se alegrasse;
quem compra, como se não o possuísse;

v.31 – e quem faz uso do mundo, como se não o usasse.
Pois a configuração deste mundo está passando.

v.32a – O que quero é que vocês sejam livres de preocupações.

O como se não (hõs mé) expressa uma relação dialética com o mundo, que permite continuar firme na ideia do mundo como criação de Deus e ao mesmo tempo participar no desprendimento dele através da participação no evento escatológico (Bultmann). Trata-se de evitar uma fuga e negação do mundo, um dualismo ou uma ética libertinista, e possibilitar o agir responsável com o amor mostrado por Deus (Jo 3,16). Isso não é possível sem um distanciamento dos vínculos mundanos, que se apresentam, para o homem religioso, tanto no legalismo, como num ativismo preocupado. O distanciamento se fundamenta na cruz de Cristo, na qual foi crucificado o mundo (Gl 6,14). Somos impelidos a pensar na oração sacerdotal de Cristo: continuamos no mundo, mas não somos do mundo (Jo 17,11.16). Ou, em termos de liberdade cristã, Lutero definiu essa relação dialética pela afirmação de que o cristão é senhor livre sobre todas as coisas, mas, por amor de Cristo, é servidor de todas as coisas e sujeito a todos.

Paulo fundamenta o hõs mé com o argumento da transitoriedade deste mundo (v.3b). Com o mesmo argumento filósofos estoicos podiam fazer recomendações semelhantes às de Paulo: o verdadeiro sábio tem o ideal da impassibilidade e ataraxia diante dos bons e maus momentos da vida. Contudo, é fácil observar que Paulo não está pensando na nossa experiência cotidiana de que prazos se esgotam e obras humanas ruem. Ele sabe da brevidade do tempo e do fim da configuração deste mundo, porque vive na esperança pela parusia imediata (1 Co 15,51ss; 1 Ts 4,15ss – cf. Bornkamm, op.cit., p.212). Tribulação e angústia (v.26) são-lhe sinais do fim próximo, assim como com a ressurreição de Cristo já começaram os últimos dias, as coisas do velho éon passaram, houve nova criação (II Co 5,17). Por causa dessa tensão escatológica entre o já agora e o ainda não, o hõs mé de Paulo não pode ser entendido com desprezo pelo mundo, pois conta com a presença da salvação (Wendland).

Entretanto, não podemos acompanhar mais o apóstolo na esperança imediata da segunda vinda de Cristo. Nossa vivência é a de que o tempo não é breve (O povo diz: há mais tempo do que vida.), e por isso muitas de suas concepções (p. ex., do matrimônio em 1 Co 7) nos são estranhas e irreais. Seus esforços de aconselhamento ético recebem talvez nosso elogio, mas não nossa adesão. Se bem que reconheçamos que Paulo não se preocupa com detalhes e data da parusia (cf. 1 Ts 5,1ss), podendo também ser muito flexível em sua terminologia (2 Co 5,2), não nos sentimos à vontade para aceitar seus pensamentos. Sabemos que precisamos trabalhar com as possibilidades que o mundo nos oferece, embora esperemos por um futuro que não está em nossas mãos. Um estudo mais aprofundado da teologia paulina, porém, evidencia que a base da sua esperança não é a segunda vinda de Cristo, mas exclusivamente a graça de Deus (Brakemeier). Então o homem hodierno poderá acompanhá-lo e dizer: Estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem cousas do presente, nem do porvir… poderá separar-nos do amor de Deus., que está em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 8,38s). A Palavra justificadora de Deus é, qualitativa e temporalmente, o último, que julga e salva as coisas penúltimas deste mundo (Bonhoeffer).

Nosso texto pede um distanciamento do mundo, para que a nova vida possa obter lugar, para que com a nova existência o cristão participe no encontro de Cristo com o mundo. Livre a morte, dos poderes do mundo, do medo, da escravidão às comodidades e riquezas (Mc 10,17-27) e livre das preocupações (cf. Sl 127,2; Mt 6,25ss), ele pode considerar seu lugar social como a esfera de atividade que lhe foi atribuída por Deus (1 Co 7,17). Mais ainda: pode alegrar-se com os alegres e chorar com os que choram (Rm 12,15) e identificar-se com todos os grupos sociais e culturais, para cooperar com o evangelho (1 Co 9,21-23).

Da mesma forma poderá, em responsabilidade própria, adotar uma conduta de acordo com o bem, a justiça, os valores sociais e as virtudes dignas de louvor (Fp 4,8). O hõs mé preserva-o da ansiedade e do ativismo, por um lado, e de atitudes entusiastas, por outro (cf. a insistência de Paulo no trabalho, numa carta em que passará a descrever a parusia: 1 Ts 4,11s) .

O adjetivo cristão, por conseguinte, não caberá em determinada ordem social ou forma histórica de trabalho e remuneração, mas na atitude e no exemplo eficaz e libertador de pessoas e grupos dentro e diante delas, dominados pela graça e guiados pela esperança no novo mundo de Deus.

 

IV

A prédica poderá desfrutar o impacto inicial da leitura. Em seguida, há duas possibilidades para a aproximação vivencial ao ouvinte:

a) Continuar a sequência de frases com o como se não: Quem trabalha, como se não trabalhasse, quem educa os filhos, quem estuda, quem formula teorias, quem reclama um direito, quem se preocupa com a igreja, etc. Convém também deixar doer a primeira das sentenças (v.29b), pois modernamente as pessoas procuram demais o conforto e consolo no matrimônio, os quais só a graça de Deus dá plenamente. Em seguida o pregador terá que corrigir uma possível compreensão falsa: O como se não não é fuga, nem fingimento, nem fazer de conta. Antes é viver mais consciente, mais livremente, nessa relação dialética. É poder dar valor ao presente, por causa da abertura para o futuro de Deus. Mas requer desprendimento, meia-volta, arrependimento.

b) Após observar que prédicas escatológicas não estão em moda nos nossos púlpitos (Por quê? Apenas medo de plagiar os Testemunhas de Jeová?), lançar a pergunta: Que faria você, que fariam as pessoas, se viessem a saber que amanhã acabaria o mundo? Honestamente, estariam tranquilos? Que seria do trabalho, da casa construída pela metade, das dívidas? – Esboçar as reações as mais diversas: descrença, bebedeiras, pânico, rezas. A tranquilidade farisaica e a autocrítica do publicano. Lutero hoje plantaria uma macieira.

Tanto a) como b) podem ajudar o ouvinte a se testar a sim mesmo, a se perguntar se ele é capaz de largar tudo porque o tempo da vinda do reino é breve; se ele deixou a graça de Deus se tornar tão poderosa em si que a riqueza, a aposentadoria, o lazer, ou a realização pessoal se tornaram secundárias face ao chorar com os que choram; se Cristo passou a viver nele (Gl 2,20) no sentido de que carrega para a cruz todos os pecados e as futilidades do mundo; se ele está oferecendo sacrifício vivo, renovado e não conformado com este velho mundo (Rm 12,1s). Na prédica a partir de (não sobre) 1 Co 7,29-32a pregador e ouvinte poderão, então, dar-se as mãos e, contritos mas confiantes, dirigir-se ao Deus-Homem Jesus Cristo, que é real, e por meio do qual o mundo é conservado tanto tempo até que seja maduro para o seu fim (Bonhoeffer). Se o dar-se-as-mãos for sincero, também lutará por melhores condições de trabalho para o próximo, por força da graça divina.

 

Bibliografia

Balz, H. R. Christus in Korinth, onken, Kassel, 1970;
Bonhoeffer, D. Ethik, 7ª ed. Munique 1966;
Bornkamm, G., Paulus, Stuttgart, 1969;
Brakemeier, G., A esperança na segunda vinda de Cristo e sua importância para a teologia de Paulo, em: Estudos Teológicos, 1969/1;
Bultmann, R. Teologie des Neuen Testament. ,6ª Ed. Tübingen 1968;
Fitzmeyer, J. A. e Brown, R. E., The Jerome Biblical Commentary, vol. II, Bombaim 1972;
Hack, U., art. Arbeiten“ TRT, vol. 1, 2ª ed. Göttingen 1974;
Schweitzer, W. Liberdade para Viver, São Leopoldo, 1973;
Trillhaas, W. Ethik, 3ª ed. Berlim 1970;
Wendland, D. Ética do Novo Testamento, São Leopoldo, 1973.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).

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