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Proclamar Libertação – Volume 27
Prédica: Mateus 4.1-11
Leituras: Gênesis 2.7-9, 15-17; 3.1-7 e Romanos 5.12 (13-16) 17-19
Autor: Augusto E. Kunert
Data Litúrgica: 1º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 17/02/2002

 

1. Introdução

Abre-se, de início, a pergunta pela intenção do texto. Alguns exegetas dizem que ele é um somatório da cristologia e soterologia da cristandade primitiva. Outros argumentam que as três tentações não são especificamente messiânicas e, sim, mais a indicação de situações na vida dos cristãos. O terceiro grupo de exegetas, e a este eu me associo, diz que Jesus é, como messias, o Filho amado de Deus e fiel em sua obediência a Deus. O mesmo grupo afirma que o texto é importante na edificação da comunidade (Voigt, p. 157).

É significativo para a comunidade que o texto é cristológico e mostra a vitória de Jesus sobre o tentador, permanecendo obediente ao Deus do primeiro mandamento. Isto é importante para a Igreja e para o membro em situações de tentação e de desânimo.

O texto corrige uma compreensão errônea sobre o Messias. O povo de Israel queria um Messias político, revestido de poderes especiais. O texto contraria essa expectativa e apresenta o perfil do Messias como Filho amado e obediente a Deus, renunciando aos poderes políticos. Ele ressalta a obediência do Filho ao Pai. Mostra a rejeição do caminho da glória para assumir a “via crucis” em favor de nós. Narra a luta contra Satanás e a vitória da obediência do Filho ao Pai: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto” (v. 10).

 

2. Momentos de exegese

O deserto e o jejum de 40 dias lembram situações vividas por Moisés. Ele enfrentou a solidão e esteve por 40 dias no Sinai (Gn 24.19). Temos aí duas situações marcantes. Moisés recebe no Sinai os dez mandamentos, a lei que orienta a vida do povo de Israel. Jesus, depois de 40 dias de reflexão e oração em jejum, obediente ao Deus do primeiro mandamento, inicia o caminho da reconciliação. Enquanto os dez mandamentos são a expressão da primeira aliança, a reconciliação pela cruz de Jesus é a expressão da segunda aliança de Deus com o seu povo.

As citações no v. 4 (“Não só de pão vive o homem”), no v. 7 (“Não tentarás o Senhor teu Deus”) e no v. 10 (“Ao Senhor teu Deus adorarás”) estão relacionadas com situações vividas pelo povo de Israel durante sua peregrinação pelo deserto. O povo passa pela escola da disciplina e da obediência. Os textos de Êx 4.2 (“Israel é meu filho”) e Dt 8.5 (“Como nenhum disciplina o meu filho, assim te disciplina o Senhor teu Deus”) dão a entendê-lo assim. Israel e Jesus passam pelo caminho da obediência (NTD, p. 29).

Satanás sabe que Jesus é o Filho amado de Deus. Quer que Jesus desobedeça ao Pai. Uma vez conseguido esse objetivo, o resto, bem, o resto seria o resto com sua terrível consequência para a humanidade. Jesus permaneceu obediente e venceu o opositor: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto” (v. 10). A resposta de Jesus lembra o conteúdo do “Chemá Israel” em Dt 4 e 5, que convoca o israelita a confessar, obedecer e amar a Deus “de todo teu coração, de toda tua alma e de toda tua força”. Esta, diz Voigt, “é a maneira mais sublime de manifestar a obediência ao primeiro mandamento” (Voigt, p. 159).

A tentação de Jesus e a atitude dos escribas e anciãos na crucificação apresentam semelhança. Nas duas ocasiões, a provocação é instrumento da tentação. Em Mt 4.3 lemos: “Se és o filho de Deus, manda que estas pedras…” E em Mt 27.42, os escribas e os anciãos escarneciam: “Salvou a outros, a si mesmo não pode salvar-se”.

A multiplicação dos pães, segundo Jo 6.14 e 15, mostra a importância do milagre como identificação do messias, como rei secular, muitas vezes confundido como Messias, o Filho amado de Deus, que veio para cumprir a obra da redenção estabelecida por Deus. O povo de Israel via na multiplicação dos pães o atestado de legitimidade do Messias. A confusão levou Jesus a “retirar-se novamente sozinho para o monte” (Jo 6.19).

“Não só de pão vive o homem” – esta afirmação lembra que o alimento físico não é o único alimento do homem. Ele satisfaz o estômago, mata a fome. Ele é importante. Mas o homem necessita do alimento que vem da boca de Deus. O pão-pão é básico para a vida física. A Palavra de Deus é o pão decisivo para a vida espiritual e física.

No conceito de Israel, e isto é importante para a compreensão do texto, a Palavra de Deus significa vida. Os textos Dt 30.15 (“Proponho hoje a vida e o bem, a morte e o mal”) e mais Dt 32.47 (“Esta palavra não é para vós outros vã, antes é a vossa vida”) atestam que a Palavra de Deus, no conceito de Israel, significa “ter vida”.

 

3. Meditação

O pregador vai, seguramente, apontar que os membros e a Igreja estão sujeitos à tentação, mas deve, em primeiro lugar, referir-se à seriedade da tentação de Jesus. A sua atualização imediata no dia-a-dia da comunidade e dos membros descaracterizará a luta de Jesus, prejudicando a mensagem do texto. No centro da prédica deve permanecer a obediência de Jesus ao Deus do primeiro mandamento.

O texto é previsto para a época da paixão. Texto e período referem-se ao sofrimento de Jesus. A tentação tem a marca do sofrimento. Jesus enfrenta fome, malícia e provocação. Também a paixão é época de jejum. Este é comentado nas comunidades e na mídia. Nós luteranos não temos o jejum como exigência de boa obra, mas reconhecemos o seu uso como bom ensaio espiritual em oração e vigília para romper o círculo vicioso de práticas prejudiciais à saúde e entrave à vida comunitária.

O texto mostra a vitória de Jesus sobre Satanás. A sua luta aconteceu, e isto é importante para a prédica, em favor de nós. Jesus integra-nos em sua vitória e nos brinda com a reconciliação. Nele temos o sumo sacerdote que se compadece de nossas fraquezas; antes foi tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado (Hb 6.20; 4.15). Jesus, homem verdadeiro e Deus verdadeiro, abre-nos a porta da reconciliação. O caminho da reconciliação é marcado pela renúncia e pelo sofrimento de Jesus.

A primeira tentação aconteceu no deserto, um lugar ermo e sem alimento. O jejum enfraqueceu o corpo e diminuiu a resistência. Jesus buscou força e apoio na oração. O habilidoso Satanás achou que era chegada a hora para o golpe. Ele tentou manipular a situação, usando a Palavra de Deus. Com o seu uso procurou encobrir a cilada preparada. O objetivo é impedir a obediência do Filho ao Pai. Para consegui-lo, valeu-se de todos os meios. A cruz não deve acontecer. Pois, por incrível que pareça à razão humana, a cruz é a grande vitória de Jesus.

Nas duas primeiras tentações, Satanás arma seus ataques com muita astúcia e, na terceira, deixando cair a máscara, age sem rodeios. O desfecho acontecerá com a escolha entre a glória e a renúncia às vantagens pessoais; entre obediência e desobediência ao Deus do primeiro mandamento. Jesus não se deixou seduzir. Saiu-se vitorioso com a obediência a Deus.

Segunda tentação – com o atendimento do salto proposto, Jesus teria conquistado, de imediato, a simpatia e o aplauso das massas. Ele seria o herói do povo. A sua chegada incólume ao solo seria o sinal da proteção de Deus, e o povo assistiria a um grande espetáculo. A notícia da transformação de pedras em pão e do salto maravilhoso sem dispor dos nossos meios de comunicação modernos teria se espalhado, de boca em boca, com rapidez incrível. A curiosidade e mais a ânsia por soluções de problemas pessoais e coletivos movimentariam o país.

Quais seriam as consequências? Haveria uma conversão em massa? O arrependimento seria geral? O povo buscaria o Deus vivo? Os corruptos passariam por uma transformação ou aproveitariam a situação para auferir lucros maiores? Os exploradores dos mais fracos abandonariam suas práticas para iniciar uma vida nova? Não seria assim que as massas, maravilhadas, receberiam a transformação de pedras em pães como um novo meio de vida mais fácil e o salto como um ótimo programa de diversão popular? Transformação e salto terminariam na receita romana: “panem et circenses” – dê ao povo pão e diversão (Voigt, p. 161).

Jesus conhece o íntimo das pessoas e sabe que a realidade desastrosa do homem é a sua cegueira. Portanto, nada de transformar pedras em pão, nada de saltos espetaculares. Esses milagres reforçariam a opinião distorcida do povo sobre o Messias e, na situação do momento, seriam desobediência a Deus. A sua decisão vitoriosa pela obediência está ligada ao primeiro mandamento e com a busca, em primeiro lugar, do Reino de Deus e de sua justiça (Mt 22.27 e 6.33).

Terceira tentação – com ela, Satanás persegue o mesmo objetivo. Quer fazer de Jesus seu serviçal. A oferta de poder e maravilhas do mundo continua a mesma armadilha. Para Satanás valeu impedir, em todas as ocasiões, a obediência do Filho amado ao Pai.

Satanás arquitetou estratégias inteligentes para atrair pessoas a fim de, sem que muitas o notem, subjugá-las à sua vontade. A oferta de Deus é outra. Irrevogavelmente, Deus quer ascendência sobre nós. Mas o quer pela fé e pelo amor e não pelo domínio, poder, pela força, falsidade. Jesus nos alerta de que em sua luta e tentação não se trata de pão, mas do Reino de Deus. Não se trata de diversão com espetáculos, mas da reconciliação. O pão é importante, sim, muito importante. Sem o pão não há vida física sobre a terra. Mas tudo tem o seu lugar. Vale a recomendação de Jesus: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22.17). Não é viável subordinar o Reino de Deus ao reino do pão ou o Reino de Deus ao nosso bem-estar.

É bom observar o que Jesus nos diz: “Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescidas” (Mt 6.33). No caso de uma inversão das prioridades dos reinos, Jesus não teria concluído a obra de Deus. O crucificado, morto, sepultado e ressuscitado pro nobis não teria acontecido. O arrependimento com vida nova em comunhão com Jesus continuaria um sonho distante. Não haveria passagem do velho para o novo, como diz Paulo: “E assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura, as coisas antigas passaram; eis que se fizeram novas” (2 Co 5.17). Força e poder não conquistam corações para uma vida em fé e amor. A violência nem o espetáculo transformam corações em prestadores do serviço de caridade. Corrupção, exploração e violência não são respostas obedientes da fé. A riqueza e o bem-estar podem transformar-se em deuses que ferem a paz com Deus e entre os homens. A fé no Filho amado, obediente ao Pai, crucificado e ressuscitado, recebe a graça da reconciliação e com ela a vida com paz e justiça.

Jesus rejeita as ofertas de Satanás. Nega-se ao uso de seus poderes para fins de interesses pessoais. No seu conceito, vale “divulgar o Evangelho”. Esta é a sua missão (Mc 1.36-38). Não aceita a sugestão refinada de pôr Deus à prova. Também mais tarde, coerente com a sua atitude de obediência ao Pai lá no deserto, negou-se a dar sinais para justificar sua função (Mc 8.11-13). Nunca usou os seus poderes para dar espetáculos. Os evangelhos atestam isso ao registrar que Jesus realizou milagres somente em plena sintonia com Deus. Veja a cura de um mudo: Jesus, “erguendo os olhos ao céu, suspirou e disse, efatá” (Mc 7.34). Nas bodas de Caná falou à sua mãe: “Ainda não é chegada a minha hora” (Jo 2.4) Na discussão com os seus irmãos, lembrou: “O meu tempo ainda não é chegado” (Jo 7.6). No relato da ressurreição de Lázaro lemos: “Levantando os olhos para o céu disse: Pai, graças te dou porque me ouviste” (Jo 11.41). Jesus valorizou e manteve a ligação íntima com Deus e somente a partir dela operou e tomou atitudes: “Eu sabia que sempre me ouves” (Jo 11.42).

 

4. Atualização

Muitos membros estão com suas despensas lotadas com o necessário para comer e beber. Não faltam aqueles que não ligam para quem luta pelo pão de cada dia. Eles carecem de compreensão para com os que passam fome e estão no deserto do abandono, seja por culpa própria ou pela falta de oportunidade, ou mesmo pela dureza da vida. E, em nossa cegueira, o risco de envolver-nos com uma teologia da glória é muito grande. É cômodo seguir a um “Evangelho de tudo bem”. A natureza humana foge da cruz. Não quer para si nem sofrimento nem miséria. Ao sofrer necessidades, gostaríamos de poder transformar pedras em pão, doença em saúde, solidão em companhia agradável.

A Igreja tem por missão pregar valores evangélicos. Nem sempre ela considera as necessidades físicas das pessoas. Escreveram-se muitas páginas negativas da história da Igreja. Muita gente morreu em guerras pelo poder quando a Igreja inverteu a prioridade dos reinos em prejuízo de sua missão. Por outro lado, se usarmos a resposta de Jesus “Não só de pão vive o homem” para negar a responsabilidade social da Igreja e acentuar, unilateralmente, sua responsabilidade pela vida espiritual desligada da vida social, não entendemos o Evangelho e estaremos, no mínimo, ocupando uma posição cínica. A intenção de convencer alguém de que possa viver sem o pão como alimento do corpo físico é ridícula. A tentativa terminaria, seguramente, igual ao conto popular: “O meu burro foi tão burro, que, quase acostumado a não comer, foi inventar de morrer”.

É bom cuidar-se do perigo da parcialidade. É aconselhável ver os dois lados. Obviamente, toda pessoa precisa de pão de farinha como alimento. É óbvio também que a pessoa não vive só desse tipo de pão. Necessitamos do pão-pão e do pão da vida, que é a Palavra de Deus. Jesus ensina, na oração do Pai-nosso, a pedir pelo “pão de cada dia”. Na mesma oração, está em primeiro lugar a evocação “Pai Nosso”. O seu nome deve ser santificado, o seu Reino quer ser anunciado e a “sua vontade seja feita”. Irrevogavelmente vale para a Igreja e seus membros, como Jesus fez no deserto e nos recomenda com clareza, que o Reino de Deus esteja em primeiro lugar. A sua busca em primeiro lugar ou o amor, louvar e obedecer a Deus sobre todas as cousas exige decisões continuamente. Elas são tomadas nas pequenas tentações do dia-a-dia e estendem-se às situações do status confessionais. Em todos os momentos, vale o que Pedro confessou diante do Sinédrio: “Antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (At 5.29). Isto, porém, não implica nem libera a Igreja e seus membros da responsabilidade social. Fome física e fome espiritual são preocupações inseparáveis do Evangelho. O pregador deve considerar que o Evangelho reúne anúncio e serviço, que serviço – diaconia – é inerente ao anúncio. A evangelização compreende anúncio e serviço. Digamos assim: a Igreja serve a Palavra de Deus como o pão para a nossa vida espiritual, que, ao mesmo tempo, dinamiza-nos para o serviço do amor ao próximo. No contexto, o Evangelho lembra que Jesus, vendo que a multidão que o seguia estava com fome, alimentou-a com a multiplicação dos pães (Mt 6.11). Ele comeu em companhia dos pecadores (Mc 2.15). Lembrou que o pai oferece pão ao filho e não pedra (Mt 7.9). Enfim, o Filho amado, faminto no deserto, é mais do que um ídolo. Ele é o nosso pão da vida (Jo 6.35). Ele é o verbo que se fez carne e habitou entre nós e a nossa vida (Jo 1.14 e 14.6). Assiste-nos na dor, na tentação e nos leva à casa paterna (Mt 6.13 e 14.2).

O uso de frases pomposas e da Palavra de Deus em benefício próprio sempre é negativo. É bom que a Igreja, deixada um tanto de lado em nosso mundo moderno, marque presença na sociedade com o testemunho sólido e claro. Ufanismo e glória prejudicam seu testemunho e credibilidade (Göttinger, p. 135).

Na segunda tentação, Satanás insinua a Jesus pôr à prova a coerência de Deus. Não foi Deus que disse que enviaria anjos para que nada de ruim acontecesse a seu eleito? Pois então, Jesus, o que estás esperando? Joga-te do pináculo do templo, e os anjos virão para carregar-te com segurança ao solo! Que espetáculo! Que demonstração de poder!

Quem pode afirmar que nunca desejou maiores poderes à Igreja? Que ela assumisse uma postura de força e menos de serva humilde, que fosse mais reconhecida, ocupando um lugar de maior destaque na vida pública! Então sim, o poder de Jesus brilharia e o serviço humilde do amor em favor dos cansados e oprimidos, dos marginalizados e famintos daria maior espaço à ação transformadora de pedras em pão. O poder proporcionaria espetáculos maravilhosos, e a Igreja estaria no centro das atenções. Não foram os discípulos que pediram autorização a Jesus para mandar “descer fogo do céu….” (Lc 9.54)

O desejo por poder, de estar por cima e de levar vantagem joga com os nossos sentimentos. A tentação adora a megalomania e o egoísmo. Para camuflar sua intenção, reveste-se de diferente roupagem.

É difícil diferenciar entre desejo e confiança. O limite entre um e outro é estreito. A iniciativa pode ser qualificada de sede por poder. A confiança pode ser confundida com falta de ação, com marasmo. Abre-se a pergunta pela ação do Espírito Santo na Palavra de Deus ou da tentativa de sua manipulação para atender desejos pessoais. Ou dito assim: confiança – “Seja feita a tua vontade” – ou manipulação do desejo: faça-se a minha vontade. Satanás usou a Palavra de Deus com segunda intenção, escondendo o seu jogo manipulador atrás do desejo.

O texto alerta contra o mau uso da Palavra de Deus. É bom deixarmos afinar os ouvidos e aprimorar os sentimentos pela ação do Espírito Santo, orando e vigiando, para que nos ensine a sabedoria da fé e nos dê o discernimento entre obediência e desejo, entre uso evangélico da Palavra e o abuso da mesma.

O texto, ao falar em “todos os reinos do mundo”, lembra que devemos sair das nossas quatro paredes e ter abertura para os problemas da sociedade, tanto local quanto nacional e mundial. Fechados em nosso pequeno mundo, corremos o risco de fazer da Palavra de Deus uma dura lei e do Evangelho um dogma fundamentalista e desumano. Facilmente o pedido “Vem, Espírito criador” pode transformar-se em comando e alimentar a pretensão de poder adonar-se do Espírito Santo, esquecendo que ele sopra onde e quando quiser. O Consolador, que nos “ensinará todas estas coisas” (Jo 14.26), ficaria diminuído a um servidor do egoísmo e da arrogância do meu “eu”.

Gostamos de cuidar do próprio pomar, colher e usufruir dos melhores frutos, esquecendo que em nossa vizinhança há gente sem pão. Jesus nos quer abrir a visão para que tenhamos “olhos claros que enxergam o irmão” (HPD 166). O Espírito, o mesmo que levou Jesus ao deserto, em sua qualidade de consolador, renovador e unificador, ajuda-nos a romper o círculo vicioso do eu + eu, dando-nos compreensão para as carências de outros. Fome, guerra, perseguição, exploração, violência e catástrofes atacam milhões de pessoas. Jesus solidarizou-se com elas. Sofreu fome no deserto. Em sua solidariedade convida-nos à comunhão de vida consigo e com os que sofrem. (Falkenroth, p. 122).

O perigo que ronda a Igreja e seus membros é a tentação pelo lucro, pela vantagem, a vontade de ser importante. Métodos e meios aplicados para conseguir objetivos propostos e pouco recomendáveis não foram privilégio da Igreja e das gerações no passado. A mesma tentação é a realidade de hoje. É necessário estarmos atentos, ser críticos e de mente aberta, assumindo a recomendação de Jesus: “Orar e vigiar”. Somente assim poderemos, com a ajuda do Espírito Santo, decidir entre obediência evangélica e obediência interesseira. É fácil condenar situações ocorridas longe de nós e ficar de boca fechada diante da sujeira no próprio ambiente. Atacar erros de outros pode ser uma manobra para desviar a atenção do próprio solo, para ficar comodamente instalado na poltrona. Cuidado, está rondando por aí o mesmo tentador que atacou Jesus no deserto!

Enfrentar problemas em favor da sociedade, mesmo que aconteça só na nossa rua, pode trazer complicações. Vai envolver e inquietar-nos. Mesmo que pretendamos – para encobrir nossa falta de ação – usar a desculpa de que o nosso silêncio diante da injustiça é uma atitude desculpável ou até justificável pelo instinto da autoconservação, é bom ter muito cuidado. A tentação gosta da desculpa barata, e poderemos estar aí dobrando os joelhos diante de outros deuses!

Em nossa sociedade, é temeroso falar em Satanás, em tentação e culpa. Os ouvidos de muitos estão fechados para esses assuntos. Facilmente recebemos um sorriso de compaixão. Mas, com isso, o problema não se liquida. Veja a Segunda Guerra Mundial com a morte de mais de 55 milhões de pessoas. Está aí o genocídio de milhões de judeus pelo nazismo e de outros tantos homens, mulheres e crianças pelo comunismo marxista e demais revoluções. Não podemos apagar essa culpa na história da humanidade. O desejo pelo poder arrasta os prepotentes a cometerem essas barbaridades. E nós, em nosso pequeno mundo, como ficamos com a violência em nossas cidades, com a corrupção na administração pública? Em nossa vida pessoal, como vamos de egoísmo e desrespeito em nossas relações humanas e com a natureza? Todo mal causado é consequência do amor, do respeito e da compreensão que o Evangelho oferece para uma vida em comunhão? O mal é mais do que um sentimento fugaz. Ele é o poder visível que luta contra tudo que vem de Deus para arrancar-nos da esfera da fé e do amor de Deus e para submeter-nos à sua obediência.

Jesus, sabedor da tentação em nossa vida, ensina-nos a pedir no Pai-nosso, na sexta petição: “e não nos deixes cair em tentação”. Sabia que a tentação é uma atravessadora perigosa nas relações com Deus e entre as pessoas. A mulher de Jó, decepcionada com o marido, crítica sua fidelidade a Deus: “Amaldiçoa a Deus e morre” (Jó 2.9). Moisés, intrigado com a sarça ardente sem consumir-se, tentado pela curiosidade, queria ver para crer (Êx 3.3). E Pedro, movido pelo medo, negou Jesus para salvar a própria pele (Mt 26.69). A tentação faz uso das mais diversas razões.

A consumação da tentação, seja qual for a sua origem, nascida dentro de mim ou surgida por impulso de fora, rompe a relação com Deus e com as pessoas. A inveja, a arrogância e o egoísmo são sentimentos pessoais, que podem nascer dentro de mim e serem acordados e incentivados por influências que vêm de fora. A tentação não freada a tempo, uma vez concretizada, mergulha-nos na culpa, no mínimo no prejuízo. Exemplo clássico é Esaú. O desejo o dominou a tal ponto que vendeu o seu direito de primogênito por um prato de lentilhas (Gn 25.39). O Novo Testamento ensina-nos que devemos vestir uma armadura íntima para resistir “aos poderes, que não são de carne e osso” (Ef 6.11-12).

Jesus vem em nosso auxílio e recomenda: “Vigiai e orai para não cairdes em tentação” (Mt 26.41). Vigiar e orar significa estar em alerta e ligado na fé para que os impulsos maus dentro de mim e os que vêm de fora não criem corpo, mas passem a ser superados.

O vigiar e orar não se limitam à nossa vida pessoal. Ligam-se à sociedade e à vida pública. Não adianta apresentar-nos limpos por fora, bem lavadinhos e vestidos e estar “por dentro cheios de rapina e intemperança” (Mt 23.25-27). No terreno global, o Novo Testamento dá-nos o exemplo negativo de Jerusalém. A permanência de Jerusalém na sua cegueira, que matou profetas e apedrejou os que foram enviados, “a fez sofrer sérias consequências” (Lc 19.43 ) (Fritzsche, p. 34).

Vigiar e orar – somente assim ficamos ligados a quem nos conforta, fortalece e acompanha. Jesus ajuda-nos a manter fidelidade na luta com a tentação. Noé é um exemplo de vigiar e orar. Assim lhe foi dado reconhecer os sinais dos tempos e não entrou na onda dos que continuavam com a sua vida viciada. Vigiando e orando, não foi surpreendido pela catástrofe de uma situação deteriorada.

Com o vigiar e orar pedimos a Deus, assim como fazemos no Pai-Nosso, que nos livre do mal e da tentação para que conosco não aconteça um “‘tarde demais’, o que na compreensão escatológica de Jesus pode acontecer”. O “tarde demais” não é consequência do destino ou de alguma predestinação, e sim ele vem da própria culpa. Os exemplos das jovens prudentes e imprudentes (Mt 25.1-13) e do homem rico e de Lázaro, quando o primeiro, iludido com a sua riqueza, gozou em vida todos os privilégios e encheu-se de culpa, atestam o “tarde demais” (Fritzsche, p. 32).

Portanto, “vigiai e orai para não cairdes em tentação” e “não nos deixes cair em tentação”.

 

5. Subsídios litúrgicos

Confissão: Deus nosso, Pai nosso, a ti pedimos que nos livres da tentação para superar os maus pensamentos e o mau não nos vença. Ouça, Senhor, a ti rogamos por amor do teu Filho amado Jesus Cristo, o clamor do teu povo, o grito do pecador arrependido! A tua misericórdia e não a nossa justiça é a nossa salvação. Sob a cruz de Cristo rogamos: perdoa-nos a nossa culpa pelo amor de Jesus e aceita-nos como teus filhos! Tem piedade de nós, Senhor!

Palavra de graça: “Se, porém, andarmos na luz como ele está na luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu filho, nos purifica de todo pecado. Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos enganamos e a verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça” (1 Jo 1.7-9).

Oração de coleta: Ó Deus, rei de nossa alma, sabes que a nossa carne é fraca e que a tentação nos persegue! Os nossos desejos são, seguidamente, marcados pela desobediência a ti e rompem a comunhão contigo e com os irmãos. Acumulamos culpa em nossa jornada. Senhor, rei de nossa alma, dá-nos a tua orientação e teu conforto com o Espírito Santo para que ele, o consolador, atuante em tua Palavra, acompanhe-nos na caminhada da vida com amor, verdade e justiça! Amém.

 

Bibliografia

EICHHOLZ, Georg. Herr, tue meine Lippen auf. Wuppertal-Barmen : Emil Müller, 1959. v. 1;
FALKENROTH / HELD (Eds.). Hören und Fragen. Neukirchen : Neukirchener, 1978. v. 1;
FRITZSCHE, Hans-Georg. Hauptstücke des christlichen Glaubens. Berlin : Evangelische Verlagsanstalt, 1977;
GÖTTINGER Predigtmeditationen. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, v. 59, n. 11, nov. 1970;
SCHNIEWIND, Julius. Das Evangelium nach Matthäus. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1950. (Das NeueTestament Deutsch);
VOIGT, Gottfried. Homiletische Auslegung der Predigttexte : Reihe I. Gottingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1978.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).

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