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Proclamar Libertação – Volume 27
Prédica: Mateus 25.31-46
Leituras: Salmo 95.1-7a e 1 Coríntios 15.20-28
Autor: Ivone Richter Reimer
Data Litúrgica: Último Domingo do Ano Eclesiástico
Data da Pregação: 24/11/2002

 

Os pequeninos mostram onde é o lugar da igreja” – (J. Moltmann)

 

1. Contexto de morte e vida

O culto no Domingo Cristo Rei encerra o Ano Eclesiástico, lembrando a vitória de Cristo sobre todos os inimigos, inclusive sobre a morte (1 Co 15.20-28). A comunidade trará à memória as pessoas queridas que já morreram, na esperança da ressurreição, confessando com fé que Deus é Rei e Rochedo da nossa salvação (Sl 95.1-7a). Diante da morte, a comunidade de fé afirma a vitória da vida. O texto da pregação pode ajudar a orientar as pessoas rumo à vida eterna: vivendo a diaconia e a economia da justiça de Deus, podemos sair vitoriosos também no Juízo Final.

 

2. Introdução geral a Mt 25.31-46

O texto está inserido no contexto literário de Mt 16.21-28.20, encerrando o Quinto Discurso de Jesus, o discurso apocalíptico (24.1-25.46) (Reimer, PL 24, p. 312ss; Richard, p. 23-27). Após as três parábolas parenéticas (24.45-25.30), vem o Discurso sobre o Juízo Final.

Para a comunidade, esse processo pedagógico dos discursos de Mateus é ilustrativo e significativo para que cada pessoa esteja consciente de que há tempo de preparo e revisão. Mas esse tempo está limitado pelo juízo, pelo qual todas as pessoas terão de passar e prestarão contas sobre seus atos e palavras. E então, repentinamente, não há mais tempo. A palavra de julgamento já foi pronunciada. O tempo do preparo passou. O Rei juiz irá separar, colher o que foi plantado. O texto não quer assustar. Ele é parenético e seu objetivo é motivar as pessoas a viverem a sua fé a cada momento em sua vida.

 

3. Anúncio da vinda do Filho do Homem e do julgamento (25.31-33)

Na introdução da perícope (31-32a), é descrita a vinda do Filho do Homem na sua glória: todos os anjos o acompanham (veja 13.39,41,49; 16.27; 24.31) e, como anunciado em 19.28, agora ele se assenta no seu “trono da glória”.

O próprio Filho do Homem, Jesus, é o juiz do mundo. “Todos os povos” reúnem-se diante de seu trono. Também a comunidade de Mateus está inclusa nesse termo. O juízo pressupõe que todos os povos já ouviram e conhecem o Evangelho do Reino, que a missão judaico-cristã já realizou seu anúncio por todas as partes (24.9,14). Mateus quer incluir todos os povos no projeto de Deus, à medida que são sensíveis a Jesus. As fronteiras nacionais e étnicas são superadas para “focalizar a relação com Jesus e seu grupo de seguidores como o critério final para o julgamento de todos” (Saldarini, p. 140).

Para Mateus, todas as pessoas serão julgadas conforme suas obras (16.27), e no julgamento não há diferença entre comunidade e mundo (13.36-43). A própria comunidade é um corpo misto: nela convivem simultaneamente pessoas justas e pecadoras, sendo que essa dinâmica acontece em cada membro da comunidade: cada qual é pessoa justa e pecadora. Cabe, sempre de novo, perceber, crer e decidir quais ações correspondem à fé justificadora. Em outros discursos sobre o julgamento, Mateus já incluiu a comunidade (7.21-27; 13.36-43,47-50; 18.23-35). Agora apresenta a apoteose do discurso escatológico, e os membros podem identificar-se: com direita/esquerda; com o servo bom/mau (24.45-51); com as jovens sábias/néscias (25.1-13).

Os vv. 32b-33 apresentam uma parábola com linguagem pastoril, típica de juízo, caracterizada pelo termo “separar”. O juiz do mundo separa entre pessoas justas e injustas, colocando-as à direita e à esquerda, simbologia judaica para distinguir entre bom e mau. O julgamento já está realizado. A vida das pessoas cumpre a função da promotoria.

 

4. Diálogo com as pessoas justas = abençoadas (25.34-40)

O termo “rei” é usado para caracterizar Deus no seu trono de glória. No discurso escatológico, o Filho do Homem assenta-se nesse trono, assumindo também o título, o qual prepara o contraste, a oposição sociológica para a revelação do “rei” nos “pequeninos”. O Rei chama as pessoas abençoadas por Deus para herdarem, para tomarem posse do Reino que lhes foi preparado desde a criação do mundo. A bênção está relacionada com a vida e com as obras das pessoas justas, estendida aos pequeninos através da práxis da diaconia.

O diálogo (vv. 35-36 e vv. 42-43) aparece como retrospectiva de vida das pessoas. No discurso escatológico, as pessoas vêem refletido o seu próprio presente. O caráter inusitado do juízo transparece na pergunta-surpresa “quando?”. O Rei elenca obras de misericórdia concretizadas na diaconia e que expressam a economia e a justiça de Deus.

A lista das obras misericordiosas é conhecida na tradição judaica, principalmente em relação às pessoas pobres, doentes, famintas e nus. Não se trata do simples fato de dar esmolas, mas de ter uma prática ética, coerente com a confissão de fé, o que é decisivo para a compreensão do juízo. Apenas uma característica, no diálogo, é própria da tradição cristã: a visita às pessoas presas. Isso indica para a realidade de comunidades (judaico)cristãs, cuja missão punha em risco a vida de quem a realizava. A visita a pessoas encarceradas era não só importante, mas vital, visto que elas não recebiam alimentação na prisão.

A grande novidade sobre a prática de obras de misericórdia é que o Rei afirma: foi a mim que o fizestes… Isso é estranho para a tradição judaica e para a comunidade de Mateus. Por isso, a pergunta quando…? é a pergunta de alguém que praticou o bem, não pensando em recompensa. É a pergunta de gente que vai descobrir o Deus abscôndito, revelado nos pequeninos! Fizeram-lhe o bem, sem o saber. Agora lhes é manifesta a identificação do Rei com aquelas pessoas que receberam o bem praticado: os pequeninos, que vivenciam a epifania de Deus em Cristo e que clamam por socorro. O “motivo do não-saber” é indicativo para a cristologia do texto: Cristo está presente nas pessoas famintas, nuas, doentes, presas, etc. Quem são essas pessoas?

O v. 40 introduz a novidade, a revelação do Rei. O festivo e solene “em verdade” aponta para a afirmação não só essencial, mas crucial do texto: tudo o que as pessoas justas/abençoadas fizeram “a um destes meus pequeninos irmãos/irmãs” fizeram-no ao próprio Cristo.

O adjetivo superlativado eláchistos tem o sentido de “bem pequeno/a”, “muito pequeno/a”. Em Mateus, o termo expressa aquelas pessoas que praticam a vontade de Deus (12.49-50; 28.10) e que, no juízo final, também estarão assentados em tronos para julgar (19.28-30; cf. 1 Co 6.2). Os vv. 35-39 indicam para a realidade social desses irmãos e irmãs. Sabemos que as pessoas seguidoras de Jesus, missionárias, discípulas, eram pobres que viviam pelos caminhos como estrangeiras (10.9-10, 40-42), eram perseguidas, torturadas, presas e mortas (24.9-14; cf. 1 Co 4.11-13). Quem ouve essas pessoas mensageiras ouve Cristo; quem as nega nega Cristo; quem as persegue persegue Cristo (At 9.4); quem as acolhe acolhe Cristo (Didaqué 4.1; 11.2).

A partir dessa tradição, que lhes é própria e conhecida, os membros da comunidade de Mateus sabem que o texto refere-se às mulheres e aos homens que realizam a missão em todos os lugares do mundo, de forma itinerante ou perambulante. O objetivo desse diálogo é que os membros de comunidades acolham, em todos os sentidos, essas pessoas missionárias como se acolhessem o próprio Cristo. O texto tem, pois, caráter parenético, e o v. 40 tem relação direta com 10.40. Parece que o pano de fundo tradicional desse texto é o “direito do mensageiro” judaico-cristão: o conceito de apóstolo/apóstola, no/na qual o Filho do Homem realiza sua epifania (Luz, p. 539). Por outro lado, eláchistos pode estar em relação com mikrós = “pequeno” (10.42; 18.6,10,14), o que permite pensar “os e as pequeninos” de maneira universal, identificando Jesus com as pessoas pobres em geral.

 

5. Diálogo com as pessoas amaldiçoadas (25.41-45)

A estrutura do segundo diálogo está em total simetria com o primeiro. A novidade é a negação, a não-prática, e, portanto, também a condenação por parte do Rei, expressa no v. 41. São três os grupos mencionados, e, ao invés de habitarem o Reino de Deus, estão em seu contraposto, o fogo eterno, o inferno, o Heguinnom (Reimer, Céu, p. 65-66): o diabo, os anjos do diabo, as pessoas malditas.

A maldição dessas pessoas está relacionada com a sua prática. Elas são condenadas por não ter praticado as obras de misericórdia, como fizeram as pessoas justas. Trata-se de gente como aquela figueira que não deu nenhum bom fruto (Mc 11.21; Mt 21.18-22). A fé deve produzir bons frutos!

Observe-se um detalhe importante: Tanto as pessoas justas quanto as malditas chamam o Rei de “Senhor” (vv. 37,44). Isto significa que todas elas fazem parte da comunidade cristã, todas conhecem Deus. Isso é vital para Mateus: não basta ter fé, não basta ter consciência da tarefa diaconal. É necessário realizar as obras de misericórdia. Veja que somente as pessoas “malditas” mencionam o “serviço”. Elas, portanto, têm consciência do seu compromisso (v. 44). Talvez até o tivessem realizado, mas mais em honra própria (5.43-48) do que para com os “pequeninos” (v. 45).

A epifania de Cristo acontece nos “pequeninos”. Interessante que, no v. 45, não mais aparecem os “irmãos” e as “irmãs”. Isto pode significar duas coisas: a) Mateus omitiu o vocábulo, pressupondo-o, assim como fez no v. 44; b) o texto e a prática não mais se referem apenas às pessoas da comunidade cristã que trabalham na missão, mas aqui estão incluídas todas as pessoas necessitadas. Essa hipótese é reforçada pelo uso do verbo diakonéo = “servir”, usado para expressar o serviço ao próximo (crianças órfãs, mulheres viúvas, pessoas doentes, presas e empobrecidas). Isso dá ao texto e à prática da comunidade cristã uma dimensão restrita e simultaneamente ampla: obras de misericórdia para com os irmãos e as irmãs que realizam missão e evangelização de forma itinerante e para com qualquer pessoa necessitada na sociedade.

 

6. Resultado do julgamento (25.46)

A palavra de juízo, proferida pelo juiz, é introduzida pelo amém nos vv. 40 e 45: as pessoas que não servem irão para o castigo eterno, e as pessoas justas irão para a vida eterna. Esta é a “separação” realizada pelo Filho do Homem, introduzida com a parábola pastoril. Vida e morte estão em jogo! Aqui o acento recai sobre vida e morte eternas como consequência daquilo que se faz durante a vida. Acentuar a prática da fé é uma das características típicas de Mateus. Para ele, não há salvação e reconciliação baratas e inconsequentes, mas a dádiva da salvação compromete com a vida e se expressa no serviço.

 

7. Conclusão

Cristologicamente, esse texto resume a importância do Deus “Emanuel”, tão central para Mateus (1.23; 28.20): o Cristo ressurreto está presente na sua comunidade e identifica-se com a miséria e o sofrimento de quem o segue. Com isso, a comunidade também traz à memória a vida do Jesus histórico: ele próprio era pobre, sem eira nem beira, sofreu tudo até morte de cruz. Assim, o texto fala sobre todo o caminho feito pelo Filho do Homem: desde a concepção (da serva Maria) até sua atuação como Cristo glorificado.

Mateus não especula sobre o tempo e a hora do final dos tempos. A vinda do Filho do Homem, o julgamento do Rei acontece hoje, agora! As pessoas discípulas já conhecem Jesus, o ressurreto; já lhes foi dito para acolher em seu meio os pequeninos e as pequeninas. Agora, todas são julgadas a partir da solidariedade, do serviço concreto para com essas e esses, nos e nas quais Jesus mesmo se revelou. As pessoas que o fizeram são declaradas benditas, abençoadas. As outras perderam a hora, talvez preocupadas demais com as coisas que tinham que fazer e resolver (8.18-22; Lc 14.16-24).

O texto serve de admoestação diante do que fazemos. Nossas obras devem ser coerentes com nossa confissão de fé. E isso não só em ocasiões especiais, mas nas relações cotidianas, quando se faz algo sem pensar em Deus, sem pensar em estar realizando aquelas obras misericordiosas que agradam a Deus. A admoestação permite uma interpretação mais universal, que inclui todas as pessoas pobres nesse Cristo que sofre e recebe misericórdia. O objetivo é converter as pessoas para a prática do amor, do serviço. O amor pode resultar da admoestação, e dele também depende nossa salvação. Essa percepção não se choca com os conteúdos da justificação por fé. Ao contrário. O texto quer a vivência plena e responsável da justificação: as pessoas são declaradas justas e livres para servir, para amar!

O texto ajuda a abrir os olhos para a miséria no mundo, no país, na cidade, no campo, na comunidade: encontrar o deus absconditus no corpo dos irmãos/das irmãs e de qualquer pessoa necessitada. O texto ajuda também a repensar o serviço cristão, a missão e a evangelização cristãs, desde o ponto de vista dos sujeitos da missão e sua vida precária, bem como seus resultados. O texto, portanto, é fonte de um poder transformador que ajuda a vivenciar o juízo de Deus de uma forma serena e tranquila, sem medo, tornando-nos pessoas aptas e gratuitamente prontas para o amor.

 

8. Culto

O culto centrará na temática do juízo, que acontece já agora e toma como referência as obras de misericórdia que provêm da fé no Cristo solidário, que se identifica com as pessoas carentes e necessitadas. A pregação deve ajudar as pessoas a se confrontarem com o juízo de uma forma serena, buscando sempre vivenciar o amor e o serviço cristãos. As orações devem ajudar as pessoas a reconhecerem sua falta de amor e a fortalecerem o seu clamor: aumenta-nos a fé, para que nossa diaconia revele-se solidária com os e as pequeninos.

 

Bibliografia

BARROS, Marcelo. Conversando com Mateus. São Leopoldo/São Paulo/Goiás : CEBI/Paulus/Rede, 1999;
LUZ, Ulrich. Das Evangelium nach Matthäus (Mt 18-25). Zürich/Düsseldorf/Neukirchen-Vluyn : Benziger/Neukirchener, 1997. (Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament I/3);
SALDARINI, Anthony J. A comunidade judaico-cristã de Mateus. São Paulo : Paulinas, 2000;
RICHARD, Pablo. Evangelho de Mateus: uma visão global e libertadora. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, São Leopoldo/Petrópolis : Sinodal/Vozes, n. 27, p. 7-28, 1997;
REIMER, Ivoni Richter. Auxílio Homilético sobre Mateus 25.1-13. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal/IEPG, 1998. N. 24, p. 312ss;
_____________________. O que é céu? O que é inferno?. In: 22 Perguntas & Respostas da Fé. São Leopoldo : Sinodal, 2000. p. 63-70.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).

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