A constatação de relacionamentos tensos, a observância de diálogos truncados somados a conflitos entre gerações, acusações mútuas que levam ao desrespeito, a quebra de laços de afinidade e as suas conseqüentes atitudes de desamor são reflexos de que crises estão aflorando ou já estão instaladas. Nesta oportunidade, aponto para um slogan, muito em evidência, a crise de autoridade..
Existem muitos espaços na sociedade humana aonde se detectam crises de relacionamentos. Na famĂlia, muitos pais e tambĂ©m os filhos e as filhas vivem aquela incerteza acerca das exigĂŞncias e da quantidade de regras necessárias para que seja construĂdo um relacionamento de boa saĂşde. Em sala de aula, alunos e professores se vĂŞem confrontados com uma quantidade sufocante de leis ou com a tentação de liberdades sem limites e que trazem enormes dificuldades ao bom relacionamento e Ă administração dos centros formativos. O mundo da polĂtica partidária vive sob o fogo cruzado da fidelidade ou da dissidĂŞncia, somado Ă s pessoas no mundo empresarial gerenciado por pessoas que mandam e outras que vivem a experiĂŞncia da submissĂŁo, reforçando assim o que constatamos como sendo a crise de autoridade. Na comunhĂŁo de comunidades e de Igrejas cristĂŁs, assim como no mundo das religiões, as relações ficam estremecidas quando se alega falta de regras e diretrizes ou quando há um excesso de leis.
Quanta lei o ser humano suporta, quanta lei a sociedade toda necessita? Qual é a dose certa de misericórdia, de amor, de perdão e justiça que deixam a vida mais equilibrada e feliz?
O ser humano, desde os seus primĂłrdios, sempre conviveu com regras e leis.
Martinho Lutero, o reformador da Igreja cristĂŁ, no sĂ©culo 16, afirmava, com destaque muito especial: A tarefa mais importante da teologia Ă© saber diferenciar entre lei e Evangelho. É impossĂvel misturar lei e Evangelho, lei e liberdade. No entanto, Ă© preciso diferenciar ambas, isto sim!
A sociedade humana experimenta, por um lado, a tentação de promover relações marcadas pela permissividade e libertinagem, e convive, por outro lado, com posturas beirando o legalismo. Ambas as formas não fomentam a boa comunhão, não aproximam pessoas, pelo contrário, geram relacionamentos doentios e deixam de promover a vida.
Jesus Cristo radicaliza a lei ao afirmar que todas pessoas sĂŁo pecadoras, elas querem ser mais do que lhes Ă© possĂvel, por isso carecem da graça e do perdĂŁo de Deus. Na Ăłtica de Jesus Cristo, vida nĂŁo Ă© conquista, nĂŁo Ă© um prĂŞmio em função da obediĂŞncia cega da lei ou da vivĂŞncia de uma liberdade de qualidade duvidosa. A vida sempre Ă© graça, um dom de Deus. No relacionamento com pessoas, o que ocupava atenção especial e prioritária de Jesus eram as necessidades do prĂłximo. Esta Ă© a medida com a qual o Filho de Deus media as pessoas. A lei sempre acusa. Por causa da necessidade e da misĂ©ria humanas, Jesus priorizou sempre o critĂ©rio do amor e apontava para a justiça de Deus. Lembrou, com seu exemplo de vida, que o amor nĂŁo Ă© lei aperfeiçoada. Ele Ă© parâmetro que está acima de qualquer postura legalista ou tendĂŞncia libertina.
O Evangelho, a boa notĂcia de Jesus Cristo, prega a liberdade frente a qualquer tipo de escravidĂŁo. É boa notĂcia que sublinha a liberdade do ser humano direcionada ao prĂłximo. O Evangelho traz Ă luz a injustiça e a exploração praticadas na sociedade, para serem resolvidas. O Evangelho e a injustiça organizada sĂŁo como água e azeite; nĂŁo se confundem. O bem-estar das criaturas e da criação sĂŁo os objetos da liberdade evangĂ©lica e cristĂŁ. O conceito cristĂŁo de liberdade nĂŁo se identifica com mera emancipação. A liberdade da fĂ© se compromete com a outra pessoa e com toda a criação. Palavras de Lutero: Um cristĂŁo nĂŁo vive em si mesmo, mas em Cristo e em seu prĂłximo. Em Cristo, pela fĂ© e no prĂłximo pelo amor.
Deus nĂŁo prescreve tudo. Ele dá liberdade Ă ação. O compromisso de Deus, por isso tambĂ©m nosso compromisso, Ă© com a prática da misericĂłrdia e da justiça. Trata-se sempre de um caminho novo a ser descoberto e trilhado. NĂŁo seria este o caminho que contribui decididamente e, com qualidade, na busca de saĂdas quando se instalam em nossa sociedade as crises de autoridade?
Manfredo Siegle
pastor sinodal do SĂnodo Norte-catarinense
da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
em Joinville – SC
Jornal ANotĂcia – 04/07/2003