Livre pela fé, serva e servo por amor: a liberdade cristã como cuidado e compromisso
Vivemos tempos em que a palavra liberdade aparece em todas as conversas. Liberdade de expressão, liberdade de escolha, liberdade de ser quem se é. E está tudo certo. É próprio do ser humano o desejo de liberdade.
Mas nem sempre nos damos conta de que, muitas vezes, o que chamamos de liberdade se confunde com o simples desejo de fazer o que queremos, sem pensar nas consequências, sem perguntar se nossas palavras e atitudes ajudam a construir o bem comum.
Por isso, convido você a refletir sobre o sentido profundo da liberdade cristã, tão belamente expressa por Martim Lutero no século XVI, e ainda tão necessária nos dias de hoje.
Logo no início de seu tratado Da Liberdade Cristã, Lutero afirma:
O ser humano é um ser livre de todos e todas e a ninguém sujeito, pela fé;
e é um servo, sujeito a todos e todas, por amor.
Nessa frase, breve e poderosa, está resumida uma verdadeira revolução espiritual. A fé, para Lutero, não é uma força que nos isola, mas um dom que nos liberta das amarras interiores, da culpa, do medo e da necessidade de provar nosso valor diante de Deus e das pessoas.
De acordo com Lutero, pela fé somos livres porque sabemos que somos amados e amadas, aceitos e aceitas incondicionalmente por Deus. Essa liberdade não se conquista por mérito ou esforço, mas se recebe como graça. Como lembra o teólogo Martin Dreher, na introdução ao Tratado da Liberdade Cristã:
A liberdade cristã é proveniente de Deus, é presente dele, e não é conseguida através de ativismo que busca autorrealização religiosa.
A liberdade cristã nasce da confiança, não da performance. Não é fruto de um esforço religioso de autossuperação, mas de uma experiência profunda de entrega. Assim, a pessoa cristã não precisa se justificar diante do mundo, porque já foi justificada por Deus. Por isso, pode agir no mundo de maneira livre, não para si mesma, mas para as outras pessoas.
Essa é a segunda parte do paradoxo luterano: ser livre e, ao mesmo tempo, servo, serva. A fé liberta, e o amor orienta. A liberdade cristã não é isolamento, é comunhão. Quem é livre pela fé não precisa mais usar a palavra como arma, mas como gesto de cuidado.
Em tempos de redes sociais e desinformação, em que muitas pessoas confundem liberdade de expressão com o direito de ofender ou espalhar mentiras, a proposta de Lutero é profundamente atual. A liberdade cristã não é licença para ferir, mas um chamado à responsabilidade amorosa.
Falar a verdade, cuidar das outras pessoas e promover a paz também são formas de viver a liberdade. Nesse ponto, a reflexão do filósofo e educador Paulo Freire nos ajuda a construir uma ponte entre a espiritualidade luterana e a educação libertadora.
Para Freire, ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão. A liberdade, em sua pedagogia, é sempre relacional, dialógica e solidária. Ela nasce do encontro entre pessoas que se reconhecem como inacabadas, que aprendem juntas e que, movidas pelo amor e pela consciência de sua realidade, buscam transformar o mundo.
Em Lutero e em Freire encontramos um mesmo coração: a certeza de que a verdadeira liberdade é aquela que nos torna mais humanos, mais sensíveis ao sofrimento e com mais compromisso com a justiça.
Tanto a fé quanto a educação libertadora exigem coragem. A coragem de olhar para a realidade sem ilusões, de reconhecer nossas próprias prisões e de escolher o caminho do amor como prática transformadora.
Assim, a liberdade cristã não é fuga do mundo, mas presença ativa nele. É uma liberdade que se faz ação: no servir, no cuidar, no resistir e no esperançar. É a liberdade de quem, em meio à dor do mundo, acredita que o amor ainda é possível e necessário.
Ser livre em Cristo, portanto, é muito mais do que reivindicar o direito de dizer o que se pensa. É viver a responsabilidade de dizer o que constrói, o que edifica, o que liberta. É falar e agir de modo coerente com a fé que nos habita e com o amor que nos move. Também é escolher o caminho da verdade, mesmo quando é mais fácil calar ou se omitir.
A liberdade cristã é, no fundo, outro nome para o cuidado. Por isso, talvez possamos dizer que a liberdade, em sua forma mais bela, é verbo. Ela se conjuga no cotidiano, nas relações, na palavra que cura e na escuta que acolhe a todas as pessoas sem distinção. Ser livre é servir, é cuidar, é amar.
Recordo que recentemente, uma Carta-Mensagem publicada após o Seminário Nacional de Diaconia – CONAD 2025, que teve como tema “Diversidade sexual: acolhimento e inclusão”, retomou esse mesmo espírito de liberdade servidora.
Inspiradas pelo caminho de Emaús (Lucas 24), as pessoas participantes afirmam o compromisso de “amar sem restrições”, de caminhar com as pessoas, escutá-las em suas dores e partilhar esperança. A carta lembra que cada pessoa é imagem e semelhança de Deus, e que todas têm lugar à mesa do Senhor.
Ao referir-se à diversidade sexual e de gênero como dimensão do acolhimento cristão, o documento expressa o que Lutero já intuía e o que Freire reafirmaria séculos depois: a liberdade verdadeira não exclui, mas inclui; não oprime, mas liberta; não julga, mas cuida.
Assim, a liberdade cristã, compreendida como fé que se torna serviço, desafia-nos a viver uma espiritualidade encarnada, capaz de unir graça e compromisso, fé e justiça, liberdade e amor.
Texto: Gisele Mello
Filósofa, mestra e doutoranda em teologia pelas Faculdades EST e coordenadora do Núcleo de Projetos na Secretaria Geral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB.
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