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Lutero, a paz e o compromisso da Igreja hoje

No dia 31 de outubro de 1517, Martim Lutero afixou as 95 teses na porta da igreja de Wittenberg, na Alemanha. Através delas, manifesta-se contra a venda de indulgências e outros abusos da Igreja da época.

Lutero tornou pública a discussão sobre a legitimidade do poder papal e a venda das indulgências, que eram uma forma de comercialização do perdão de Deus. Mais do que isso, as indulgências eram um meio de arrecadar fundos para a construção da Basílica de São Pedro, em Roma.

A Reforma Luterana foi um movimento que buscou zelar pela correta doutrina e pregação do Evangelho. A busca por justiça e reconciliação modificou a vida de Lutero quando ele compreendeu a palavra bíblica de Romanos 1.17: “o justo viverá por fé”.

Em 1520, Lutero escreveu três livros importantes que deram continuidade e solidez ao movimento da Reforma: ‘’À nobreza cristã da nação alemã”, ‘’Do cativeiro babilônico da Igreja’’ e ‘’Da liberdade cristã’’.

A reforma religiosa teve impactos também na vida política, econômica e na área da educação, especialmente nos territórios que aderiram à fé luterana.

 

Lutero e a paz

Manter a paz onde puder

Lutero posiciona-se sobre o tema da paz em sua prédica sobre o Sermão do Monte, de Mateus 5.9:

“Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus… um título sublime e com excelente louvor os que se empenham pela paz, não somente para si mesmos, mas também entre outras pessoas, ajudando a conciliar situações escabrosas e emaranhadas, a tolerar desavenças, a combater e prevenir guerra e derramamento de sangue. Isso é uma grande virtude, no entanto, muito rara no mundo e entre os falsos santos… de modo que quem quer ser cristão e filho de Deus não apenas não deve começar uma guerra e provocar desavenças, mas, sim, deve esforçar-se e aconselhar a manutenção da paz onde puder, embora houvesse direito e razão suficiente para a guerra.”

Aqui, Lutero fala de como a pessoa cristã deve viver uma vida que se dedica a não violência, a não promover desavenças, mas justamente de forma contrária ao que é perpetrado no mundo.

 

Doutrina dos dois reinos

A doutrina dos dois reinos “dominou grande parte da pesquisa de Lutero sobre poder e política, essa doutrina expressou nada menos do que o problema fundamental da teologia” (Vítor Westhelle).

No que consistiu a doutrina dos dois reinos? Esse conceito apareceu no tratado ‘’Da autoridade secular’’, e o debate trouxe a questão de como as pessoas cristãs podiam ser, simultaneamente, boas cidadãs e seguidoras obedientes de Jesus.

Lutero entendeu que a humanidade se dividia entre o reino de Deus e o reino do mundo. O reino de Deus consiste em “todos os que, como verdadeiramente crentes, estão em Cristo e sob Cristo”, enquanto todos os “não cristãos” pertencem ao reino do mundo.

A doutrina dos dois reinos  “não trata apenas de dois reinos, mas também de dois governos – o governo de Jesus Cristo e o poder civil ou da lei.” (Oswald Bayer)

Compromisso da igreja com a paz

 

Revolta dos Camponeses

Em 1524 eclodiu a Revolta dos Camponeses na Alemanha. A situação nas regiões do campo era de sofrimento e desilusão em relação às condições sociais. Liderados por Thomas Müntzer, os camponeses se envolveram numa revolta contra os nobres e senhores.

Neste momento de grande instabilidade social, Lutero escreveu o texto Exortação à Paz. Foi uma tentativa de convencer os camponeses a não levantarem as armas para evitar um massacre no campo. De acordo com Lutero “onde esse derramamento de sangue começar, dificilmente haverá um fim, a não ser que antes se tenha destruído tudo”.

De forma incisiva, ele se dirigiu aos revoltosos: “É verdade que as autoridades cometem injustiça, barrando o Evangelho e oprimindo vocês quanto aos bens temporais. Injustiça maior, porém, cometem vocês ao não apenas resistirem à palavra de Deus, mas também a pisoteiam, interferindo no exercício de seu poder e direito, colocando-se, inclusive, acima dele.”

Lutero igualmente pediu aos príncipes e senhores que cedessem em sua tirania e opressão, porém suas advertências não foram suficientes e o movimento foi debelado violentamente.

Na base da argumentação de Lutero estava a ideia de que é melhor sofrer do que praticar violência ou injustiça: “não resistir à injustiça, nem lançar mão da espada, não se defender, não se vingar, mas entregar vida e bens, para quem roube quem quiser, já nos basta nosso Senhor, que não nos abandonará, conforme prometeu. Sofrer e sofrer! Cruz e cruz! – esse é o direito dos cristãos e nenhum outro.”

A posição de Lutero na Revolta dos Camponeses pode parecer ambígua e até favorável aos nobres e senhores. Todavia, o Reformador pensava pelo viés da não resistência, considerando a ideia de que quem lança mão da espada perecerá (Mateus 26.52). Da mesma forma, entendia que a violência nunca poderia ser um caminho adequado.

 

Conflitos armados e discurso de ódio

E a paz em nossos dias? Infelizmente, a realidade da violência no mundo de hoje é muito cruel, em função dos inúmeros conflitos armados e do aumento preocupante do discurso de ódio e da intolerância.

O mundo ainda está sob impacto do acordo de cessar fogo em Gaza, assinado no Egito por Israel e Hamas no último dia 13 de outubro de 2025. O acordo prevê acabar com os ataques mútuos. A esperança é isto seja um caminho para colocar fim a um conflito já dura mais de 70 anos. As consequências dos pesados ataques de Israel são, porém, preocupantes. A ofensiva do exército israelense em Gaza destruiu hospitais, universidades, escolas, além de causar a morte de milhares de crianças e mulheres.

A outra angústia que experimentamos em relação à paz está relacionada com os discursos de ódio. O discurso de ódio incita a violência e é devastador. Seu impacto é amplificado pelas redes sociais que disseminam o ódio contra as mulheres, a população negra e outros grupos sociais.

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O compromisso da IECLB

Qual seria o compromisso da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil com a cultura de paz? Evidenciamos esse compromisso na própria Constituição da IECLB, no seu Artigo 3º, inciso III:

Em obediência ao mandamento do Senhor, a IECLB tem por fim e missão:
III- promover a paz, a justiça e o amor na sociedade.

Os sinais da ação do Espírito Santo e da promoção da cultura de paz na IECLB são encontrados principalmente na área da diaconia em parceria com os movimentos sociais, bem como em grupos comunitários que se articulam pela causa da educação para a paz e não violência. Da mesma forma, instituições que promovem a agroecologia se inserem na busca pela paz. A Rede de Diaconia, uma articulação de instituições diaconais vinculadas confessionalmente à IECLB, carrega também o compromisso com a paz.

Por fim, o compromisso com a paz, com a promoção da cultura de não violência, com a justiça social e o diálogo se manifesta na vida comunitária da IECLB. Isto acontece quando existe o respeito pela outra pessoa com todas as suas diferenças, quando há solidariedade na satisfação das necessidades de sobrevivência, e quando existe cooperação na preservação da ambiente natural e do patrimônio cultural de todos os povos.

 

Bibliografia

BAYER, Oswald. A teologia de Lutero: uma atualização. 2007. São Leopoldo. Editora Sinodal
BUTIGAN, KEN. Da violência a integridade.2003. São Leopoldo. Editora Sinodal
GASSMANN, Gunter. As Confissões Luteranas: uma introdução. 2022. São Leopoldo. Editora Sinodal
LUTERO, Martinho.  À Nobreza Cristã da Nação Alemã, Acerca da Melhoria do Estamento Cristão (1520).1980. p.277-340. (Obras Selecionadas,2). 1989.São Leopoldo. Editora Sinodal
­——— Carta aos Príncipes da Saxônia sobre o Espírito Revoltoso (1524).1996 p.286-299 (Obras Selecionadas,6).
———-Contra às Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses (1525).1996. p.330-336 (Obras Selecionadas,6).
———-Exortação a Paz: Resposta aos Doze Artigos do Campesinato da Suábia (1525).1996. p.304-329 (Obras Selecionadas,6).
Presidência e Conselho da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Manifesto da IECLB: Nosso compromisso é o Evangelho, XXXI Concílio da Igreja. 2018. Curitiba
WESTELLE, Vítor. Poder e Política – Incursões na Teologia de Lutero. IN Lutero: um teólogo para tempos modernos.2013. São Leopoldo. Editora Sinodal

 

Texto: Francisco Rafael Soares dos Santos
Pastor na Paróquia Evangélica Confissão Luterana da Missão ao Longo da Rodovia BR 101

 

Leia também 

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+ O que caracteriza a igreja luterana?
+ Horta comunitária, sustentabilidade ambiental e teologia luterana
+ A liberdade cristã como cuidado e compromisso

 

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