Martim Lutero e a Inteligência Artificial: uma entrevista hipotética
Como o Reformador do século XVI responderia às questões levantadas pela tecnologia do século XXI?
Aproveitando os ecos da celebração da Reforma Protestante, o Portal Luterano pediu para o ChatGPT fazer uma entrevista hipotética com Martim Lutero. As perguntas e as respostam deveriam ser formuladas pela própria Inteligência Artificial (IA).
Na sequência, enviamos a entrevista para o Professor Rudolf von Sinner fazer uma avaliação e tecer considerações a respeito do uso da Inteligência Artificial. O artigo ficou um pouco extenso, mas muito interessante. Vale a pena ler e refletir.
A inteligência artificial (IA) tem despertado debates em todas as áreas da sociedade: ética, ciência, política e religião. Mas já pensou como Martim Lutero, líder da Reforma Protestante, reagiria a esse tema? Nesta entrevista hipotética, conduzida pela própria IA, imaginamos como Lutero poderia responder, a partir de sua teologia e estilo direto, aos desafios e oportunidades que essa tecnologia apresenta.
IA: Doutor Lutero, se o senhor vivesse hoje, em meio ao surgimento da inteligência artificial, como veria essa invenção humana?
Lutero (hipotético): Vejo como vi a imprensa em meu tempo: um instrumento. Não é boa nem má em si. O que importa é como é usada. Se serve para anunciar o Evangelho, pode ser bênção. Se serve para enganar e manipular, torna-se maldição.
IA: O senhor pregava muito sobre a liberdade cristã. Acha que a inteligência artificial pode ajudar ou atrapalhar essa liberdade?
Lutero (hipotético): A verdadeira liberdade não vem de máquinas, mas da fé em Cristo. Contudo, se a IA aliviar o ser humano de fardos e trabalhos repetitivos, pode dar mais espaço para que se estude, ore e sirva ao próximo. Mas, se tornar as pessoas escravas de algoritmos ou do poder de poucos, então será apenas uma nova forma de servidão.
IA: Muitos temem que a IA substitua o trabalho humano. Como o senhor responderia a esse medo?
Lutero (hipotético): O trabalho é dom de Deus e chamado para servir ao próximo. Se a IA faz parte desse chamado, o homem deve aprender a usá-la sem perder a dignidade. Mas sempre haverá necessidade de amor, compaixão, cuidado e ensino — coisas que máquina nenhuma pode fazer como um coração humano guiado pelo Espírito.
IA: A IA pode produzir sermões, comentários bíblicos e até responder perguntas teológicas. Isso seria uma ajuda ou um perigo para a fé?
Lutero (hipotético): Pode ser ajuda, se levar as pessoas à Escritura. Mas é perigo, se fizer com que confiem mais nas palavras de uma máquina do que na Palavra viva de Deus. Sola Scriptura! — Somente a Escritura é a fonte segura. A máquina pode apontar, mas nunca substituir o testemunho do Espírito Santo no coração do crente.
IA: A inteligência artificial levanta muitos dilemas éticos, como o uso de dados pessoais, manipulação de informações e até decisões que afetam vidas humanas. Como o senhor avaliaria isso?
Lutero (hipotético): Ética não nasce de máquinas, mas da responsabilidade humana diante de Deus. O oitavo mandamento já nos ensina a não levantar falso testemunho, e isso vale para qualquer tecnologia. Se a IA é usada para enganar, manipular ou explorar, está em pecado. Toda decisão deve ser guiada pelo amor ao próximo e pelo temor a Deus.
IA: Se tivesse que resumir um conselho para nós que lidamos com a inteligência artificial hoje, qual seria?
Lutero (hipotético): Usai tudo como dádiva, mas não vos deixeis escravizar. Lembrai-vos: nem a inteligência humana nem a artificial pode justificar o homem diante de Deus. Somente Cristo. Assim, usai a IA com temor, sabedoria e sempre a serviço do próximo.
Esta entrevista imaginária mostra que, se Lutero estivesse entre nós, provavelmente veria a inteligência artificial como viu a imprensa em seu tempo: uma ferramenta poderosa, que pode ser bênção ou maldição dependendo do uso. Para ele, o essencial não muda: Cristo é o centro da fé e da vida, e toda tecnologia deve estar a serviço do próximo e da glória de Deus.
Rudolf von Sinner: Professor nos Programas de Pós-Graduação em Teologia (do qual também é coordenador) e em Direitos Humanos e Políticas Públicas na Pontifícia Universidade Católica do Paraná em Curitiba. Pastor voluntário da IECLB, membro da comunidade do Bom Pastor no bairro Água Verde.
Muito interessante esta entrevista hipotética sobre o uso da inteligência artificial (IA) produzida pela própria. As respostas estão bastante bem articuladas e, de fato, próximas ao pensamento de Lutero. Parabéns, IA!
No entanto, é e deve ser considerada como uma informação inicial – útil, bem-feita, mas insuficiente, superficial e imprecisa. Por isso vale tecer algumas reflexões acerca das respostas colocadas pela IA na boca do hipotético Lutero se estivesse vivo nos tempos de hoje.
Em sua época, Lutero foi um “nativo da imprensa” que tinha sido inventada por Gutenberg no século anterior, com letras móveis, o que facilitava, acelerava e barateava a produção de livros. Assim, Lutero pôde tornar-se o homem medieval mais bem documentado da história.
A divulgação por panfletos com imagens, já que muitas pessoas não sabiam ler, fez com que o povo tomasse para si a Reforma. Não foi mais possível voltar atrás, como tanto o papa quanto o imperador tiveram que afinal reconhecer.
Hoje, pessoas jovens são “nativas digitais”. Quase que nascem com o smartphone na mão, com altas habilidades de manusear diferentes tecnologias e acessar uma gama muito ampla de aplicativos, jogos e redes sociais.
Algumas até se tornam especialistas em manipular conteúdo e hackear sistemas. São poderosas, muito poderosas. Será que sabem utilizar este poder? Estão tão bem formadas eticamente como tecnicamente? Têm consciência das consequências que seus atos podem ter ao expor outras pessoas, invadir sua privacidade, abusar dos seus dados e até contas bancárias?
A internet oferece muitas possibilidades, mas também perigos. Nosso Lutero hipotético vê isto muito bem. Deixa claro que tecnologia, seja da imprensa, seja da IA, é instrumento. E assim deve ser: não um fim em si mesmo, mas algo a serviço do que faz bem para a humanidade. Não é algo mau em si, mas pode se tornar um instrumento do mal, quando utilizado com más intenções, para agredir pessoas, sistemas e até países.
A IA pode nos ajudar em muito, pois é muito mais rápida do que uma mente humana e pode congregar e filtrar uma quantidade enorme de dados em segundos. Pode, por exemplo, pesquisar palavras centrais, como “liberdade”, nos escritos de Lutero.
Já a avaliação da utilidade das ocorrências e de sua coerência com o pensamento de Lutero é e deve permanecer uma tarefa do ser humano com formação especializada.
Lutero, em seu escrito sobre a Liberdade Cristã, entendeu a liberdade não apenas como liberdade de escolha, mas principalmente como liberdade para o serviço. Jesus Cristo, em sua morte na cruz e ressurreição, propiciou a liberdade do pecado. Tomou para si o peso do castigo que deveria ser carregado pelo ser humano.
O pecado e o mal, no entanto, ainda estão presentes entre nós, mesmo com a fé. Como dirá Lutero, somos pessoas justas e pecadoras ao mesmo tempo – justas na fé e na esperança, pecadoras na realidade. Mas o poder do mal já não tem mais a última palavra. Esta perspectiva nos alivia e nos abre os olhos para o próximo.
Deixando a nossa salvação ao Cristo que nos propicia a fé como dádiva, de forma totalmente gratuita, podemos usar nossa liberdade para o bem de todas e todos. É verdade que a liberdade vem da fé em Cristo, e não de máquinas, como bem diz nosso Lutero hipotético.
A IA catou ideias pertinentes de Lutero graças ao grande volume de textos dele e sobre ele disponíveis na internet. É assim que a IA aprende e hoje atinge uma qualidade surpreendente. Pode livrar, de fato, de trabalhos repetitivos para o ser humano poder dedicar-se mais ao estudo, à oração e ao serviço ao próximo.
A seleção e priorização, bem como a checagem da verdade e da pertinência do resultado, no entanto, têm que ser feitas pelo ser humano. Somente o ser humano tem fé, fala a Deus em oração e louvor, pede sabedoria e compreensão, e ouve sua palavra. Cabe ao ser humano decidir o que realmente importa na vida. A IA não pode nunca tomar esta decisão por ele.
O Lutero da IA aponta para outro problema muito pertinente: o poder e seu uso ou abuso. Algoritmos, se deixarmos, podem tomar poder sobre nós quando simplesmente seguimos seus resultados, sem análise responsável.
É muito complicado o uso cada vez mais comum da IA para a confecção de trabalhos na escola e na universidade, por exemplo. O mesmo vale para prédicas, comentários bíblicos e perguntas teológicas.
Pois quem não estudou mesmo, ou não procura atualizar-se sempre, não sabe distinguir entre o que é pertinente e o que não é. Não sabe diferenciar entre informações falsas, imprecisas ou então corretas. Assim, cai facilmente na preguiça e no erro, ou pior: apresentando com orgulho e firmeza algo que não elaborou por si. É um tipo de plágio que nunca deixa chegar à voz própria, bem-informada que deve ter quem se forma na escola ou na universidade.
Um aluno meu pediu, só de curiosidade, uma biografia minha ao ChatGPT, o qual respondeu, entre outras, que eu teria nascido em 1946, quando de fato nasci 21 anos depois apenas. Assim surge a desinformação pelas infames fake news, notícias falsas muitas vezes deliberadamente produzidas para enganar. A informação do meu ano de nascimento ainda é fácil para ser verificada e corrigida, mas outras informações podem ser bem mais sutis, sugestivas e de difícil verificação.
A verdade era um bem muito precioso para o Lutero histórico. Lhe deu a coragem de resistir ao papa e ao imperador, ainda que pudesse ter lhe custado a vida, pois exigia deles um argumento baseado na Sagrada Escritura, e não apenas em decretos humanos, ainda que eclesiásticos. Só se for provado falso na base da Escritura iria retratar-se.
O Lutero da IA tem razão, ela não deve ser utilizada nunca para enganar, manipular ou explorar. Infelizmente, é isto que acontece constantemente e cria medo, insegurança (ou falsa segurança) e desconfiança.
Lutero ainda ensinou que a meditação, a oração e a tentação são elementos centrais do trabalho teológico. O Espírito Santo dá testemunho da Palavra de Deus, que não é a letra mesmo, mas o Cristo vivo que por meio da leitura e pregação da Escritura podemos encontrar.
A meditação reflete intensamente e profundamente sobre o texto, a oração se submete ao Espírito Santo e pede que nos ilumine, a tentação está também presente e precisa ser suportada e superada sempre de novo.
Lutero teve um fé profunda, mas também foi perspicaz na percepção da realidade. O que sustenta e orienta a fé e a teologia é a promessa de Deus em que se pode confiar para a salvação e a vida eterna vindoura, todo o bem que Deus quer para nós. Fica perceptível na pregação e tangível na celebração dos sacramentos, Batismo e Santa Ceia. Este é o horizonte que a IA não pode compreender nem assimilar – nem expor com a clareza necessária numa entrevista hipotética!
Na grande exposição pelos 500 anos da Reforma na cidade de Wittenberg, onde Lutero fora professor por muitos anos, um robô impôs sua mão e proferiu uma bênção a quem quisesse. Quis-se justamente testar as reações do público. Algumas pessoas gostaram e acharam inteligente, outras acharam um horror e ficaram longe.
A tecnologia pode produzir o gesto correto e proferir as palavras corretas, mas não pode substituir o calor humano que está na mão posta sobre a cabeça de uma pessoa, a energia divina que flui por ela, a mensagem e a oração personalizadas para a pessoa sendo abençoada, nem o abraço caloroso que pode seguir-se. Um robô não tem fé nem amor, por mais que ele seja treinado a emulá-los.
Então, eu diria que a entrevista hipotética trouxe muitos elementos pertinentes de uma avaliação que Lutero provavelmente faria dela, com destaque para a ética, a responsabilidade, o bom uso para o bem do próximo e a constante busca da verdade.
Ao mesmo tempo, de longe não é completa nem suficientemente precisa – a IA tipicamente produz textos bastante genéricos, não errados, mas com pouca profundidade e sem sutileza. Por isso não substitui a leitura dos tão ricos textos de Lutero, nem uma avaliação mais apurada de suas possibilidades e seus limites.
Pois há grandes diferenças entre a imprensa do tempo de Lutero e o mundo digital de hoje: a imprensa imprime o que foi confeccionada, nada mais e nada menos. Reproduz fielmente o que o autor quis que fosse impresso – o que não quer dizer que não houvesse também erros de impressão ou até atos maldosos de falsificação e deturpação.
O trabalho criativo está na interpretação do que se lê, pois uma vez impresso, o texto já não é mais de posse única de quem o escreveu. Isto vale mais ainda para a Escritura, tão distante dos nossos tempos e que levou mais de mil anos para ser o que conhecemos hoje.
Mas a IA vai bem além: aprende, avança, acrescenta, combina e recombina em tempo recorde. Sob qual critério seleciona? Muitas vezes está enviesada. E está chegando a IA quântica, que será muito mais rápida ainda.
Acompanhar tais desenvolvimentos que surgem com uma rapidez nunca antes vista na história é muito exigente, muito mais do que o número bem reduzido de livros que estavam disponíveis na época de Lutero. Mas é o que está em nossa responsabilidade hoje. Sou grato ao Lutero histórico e ao hipotético da nossa entrevista por nos lembrarem disto.
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