Prédica: Atos 1.1-11
Leituras: Salmo 110 e Efésios 1.16-23
Autor: Arteno Ilson Spellmeier
Data Litúrgica: Ascensão de Nosso Senhor
Data da Pregação: 20/5/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXIX
Tema: Ascensão
1. Introdução
Sobre o texto de Atos 1 em pauta foram escritos importantes auxílios homiléticos (cf. Bibliografia), abordando-o a partir de diferentes ângulos e refletindo-o a partir de enfoques diversos: teológico, pastoral, missionário, histórico, educacional… Recomendo a leitura, se disponível, dos auxílios elaborados pelos colegas nos PL XI, PL XX, PL XXIV e PL XXVI, para obter informações exegéticas e subsídios adicionais para a pregação.
Quero aproximar-me do texto mais a partir de uma perspectiva pastoral-teológica, refletindo sobre a ausência de Jesus a partir da Ascensão, sua presença em nosso meio através do Espírito Santo, num mundo de contradições, e a sua parusia, sua volta e presença definitiva em nosso meio, sem as limitações da vida e condicionamentos humanos.
Onde estás, meu Deus?
Em sua história, o ser humano sempre fez a experiência da ausência de Deus, a experiência de ficar olhando para o céu, a experiência dos discípulos no dia da Ascensão. Como entender essa ausência, como interpretar a Ascensão de Jesus? Estamos expostos a um destino cego, sem sentido, assassino, psicopata? Onde estará Deus? Onde estará Jesus? Onde estará o Espírito Santo?
Onde estás, meu Deus, que não te manifestas?
– Violência, guerras, massacres, cada vez mais freqüentes, em nossas ruas, em nossas estradas, em nosso mundo, em nossos lares, e tu, meu Deus, continuas em silêncio.
– Cada vez mais pessoas estão se afastando de ti para adorar o deus-consumo, o deus-riqueza, o deus-tecnologia, o deus-droga, o deus-poder, e tu, meu Deus, não intervéns.
[Incluir as situações que oprimem as pessoas, como, por exemplo, o flagelo das drogas, o desemprego, a carestia, a falta de dinheiro etc., e que atingem a coletividade.]
Onde estás, meu Deus, que não me ajudas?
– Minha mãe (meu pai, meu filho) está hospitalizada e morrendo aos poucos em meio a dores terríveis, e tu continuas em silêncio, meu Deus, dando a impressão de que és um deus sem poder, sem sensibilidade, sem interesse por ela e por mim. Por que não nos ajudas?
– Meu filho (minha filha) é dependente de drogas, está destruindo sua vida e nossa família, e tu não fazes nada, meu Deus. Por que não te manifestas e o ajudas?
[Incluir casos concretos e situações pessoais de sofrimento e morte.]
2. Nossas dores e clamores
Para cantar ou orar: “Pelas dores deste mundo, ó Senhor, imploramos piedade. A um só tempo geme a criação. Teus ouvidos se inclinem ao clamor desta gente oprimida. Apressa-te com tua salvação. A tua paz bendita, irmanada com a justiça, abrace o mundo inteiro. Tem compaixão! O teu poder sustente o testemunho de teu povo. Teu Reino venha a nós! Kyrie eleison!” (Rodolfo Gaede Neto).
“Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” (Mt 27.46)
Estas palavras gritadas por Jesus na cruz, antes de morrer, já foram proferidas por outra pessoa desesperada e encontram-se no Salmo 22.1. As palavras de desespero do Salmo 22 desembocam não em lamúria e desconfiança, mas em louvor, afirmação da fé na presença de Deus, como memória: “Os nossos antepassados puseram a sua confiança em ti; eles confiaram em ti, e tu os salvaste…” (v. 4) e como promessa: “Ele não abandona os pobres nem se esquece de seus sofrimentos. E não se esconde deles, mas responde quando gritam por socorro” (v. 24). A memória, a lembrança do que Deus havia feito a seus antepassados, a sua promessa de não abandonar os pobres foram como uma ponte sobre o rio de desespero, sobre o silêncio de Deus.
Às palavras de desespero de Jesus seguem a ausência de Deus – Elias não veio salvá-lo (Mt 27.47-48) – e o silêncio da morte. Elas, no entanto, não ecoaram no vazio, porque a memória – “Este é o meu filho amado, que me dá muita alegria” (Mt 3.17) – e a promessa – “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão, mas três dias depois ele ressuscitará” (Mt 17.22-23) – fazem a ponte sobre a aparente ausência de Deus.
Assim mesmo, o destino não foi alterado num passe de mágica, mas cumprido. A morte na cruz foi real. De ressurreição só havia a promessa, a perspectiva, sem garantias inquestionáveis, sem intervenções espetaculares.
“É agora que o senhor vai devolver o Reino de Deus ao povo de Israel?” (At 1.6)
Esta é a pergunta que os discípulos fazem ao Cristo ressurreto depois que ele havia conversado com eles sobre o Reino (At 1.3), anunciado a eles o Espírito Santo (v. 4+5) e estava em vias de subir aos céus (v. 9). A pergunta é pertinente. Viver pela segunda vez a ausência de Jesus, viver mais uma vez a insegurança, viver mais uma vez somente da memória e da promessa era demais para os discípulos. Viver de fragmentos, na provisoriedade, na incerteza, na relatividade, os discípulos não mais queriam. Estava na hora de o Reino ser instalado.
Jesus os decepciona: em lugar de confirmar o anseio, anuncia-lhes a sua missão de testemunhar o Reino, diz-lhes que os acompanhará, dá-lhes as coordenadas geográficas, mas, quanto ao dia da irrupção do Reino, não lhes cabe saber para não começar a especular, a manipular os acontecimentos. Deve bastar-lhes a memória, a promessa. Deve bastar-lhes a presença do Espírito Santo, o Consolador – Jesus é mais do que um carismático líder religioso que, infelizmente, morreu – e a missão de testemunhar Jesus Cristo e o seu Reino “até nos lugares mais distantes da terra” (v. 8).
Para cantar ou orar: “Quando o Espírito de Deus soprou, o mundo inteiro se iluminou. A esperança deste chão brotou e um povo novo deu-se as mãos e caminhou. Lutar e crer, vencer a dor, louvar o Criador. Justiça e paz hão de reinar, e viva o amor. Quando Jesus a terra visitou, a boa nova da justiça anunciou: o cego viu, o surdo escutou, e os oprimidos das correntes libertou. Nosso poder está na união, o mundo novo vem de Deus e dos irmãos. Vamos lutando contra a divisão e preparando a festa da libertação” (Hinos do Povo de Deus, vol. 2, 437,1-3).
3. Reflexão
O Reino será devolvido? – Ele será, mas não o do povo de Israel, nem somente ao povo de Israel, pois não mais se reduz a ele. O Reino de Deus, a partir de Jesus Cristo, abrange todos os povos, todas as culturas, todos os tempos, todas as dimensões da vida, e nele têm um lugar especial as pessoas à margem, sem poder, fragilizadas, oprimidas. Não nos cabe saber a hora em que ele será restituído em sua plenitude. Importa saber que o Espírito Santo, o Cristo presente nas contradições humanas, será dado a todas as pessoas, à própria criação, para que possam testemunhar. Testemunhar interessa, não especular, nem ficar olhando abasbacados para o céu. Olhar para o céu, especular sobre a data da vinda definitiva do Reino equivale a desviar os olhos da missão recebida, a não se contentar com o Cristo presente nas contradições humanas, o Espírito Santo, a necessitar de mais que a memória e a promessa. “Um espaço abre-se para a história. A parusia fica deferida para deixar espaço à história: vem o tempo da responsabilidade humana” (Comblin, p. 75, citado segundo PL XXIV, p. 170). Dar testemunho é a missão – A quem? Aonde? “… e serão minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a região da Judéia e Samaria até nos lugares mais distantes da terra” (v. 8). O anúncio do Reino, o testemunho da vida, morte, ressurreição e volta ao Pai de Jesus Cristo não se restringe mais ao mundo judeu, mas abrange todas as culturas, todos os povos, em todos os tempos até a volta definitiva de Cristo. É nossa tarefa.
A presença de Jesus Cristo através do Espírito Santo tem muitas variantes: a presença através do testemunho da Palavra, da Santa Ceia, do Batismo, do amor, da verdade, da reconciliação, da paz, da vida, do senhorio de Deus sobre o mundo por ele criado e da Igreja por ele convocada. Restringir o testemunho de Jesus Cristo ao mundo eclesiástico ou ao mundo espiritual é prendê-lo entre quatro paredes, é limitar-lhe o senhorio. Por isso, dar testemunho do senhorio de Cristo inclui tudo o que promove os valores e parâmetros anunciados por Jesus: por exemplo, quando cristãos e cristãs se organizam na sociedade civil e lutam pelos direitos dos grupos mais excluídos de nossa sociedade (povos indígenas, crianças, mulheres, desempregados, portadoras de deficiências…), quando se filiam a partidos políticos para levar essa missão para frente a esse nível, quando protestam, quando se negam a aceitar projetos destrutivos para a vida, quando experimentam novos modelos de vivência e trabalho em conjunto, quando combatem a corrupção, quando pleiteiam uma ética solidária…
Ser testemunha de Jesus Cristo é possível de muitas formas, mas cabe a nós fazê-lo em meio às limitações e contradições a que ainda estamos sujeitos.
Loisy afirmou de forma irônica: “Jesus anunciou o Reino, mas o que veio a se constituir foi a Igreja”. A Igreja mesmo em suas contradições é depositária do mistério do testemunho, responsável por colocar sinais do Reino. Ela não é o Reino, nem de forma intermediária, nem de forma provisória, nem de forma substitutiva. Ela tem a missão de testemunhar, mas não é dona da mensagem, nem de seu conteúdo. Os sinais do Reino, os sinais mais fortes do senhorio de Deus sobre o seu mundo, no decorrer dos tempos, foram dados, em muitas ocasiões, fora dela, à revelia dela e até contra ela.
Ascensão é glorificação de Cristo – Ascensão é a volta de Cristo para junto de seu Pai, para ser glorificado, isto é, para partilhar com o Pai o poder e o amor por sua criação. A morte e a volta para junto do Pai permitem que Jesus esteja em todos os lugares e em todos os tempos, simultaneamente, e deixe de ser prisioneiro do tempo e do espaço. Na compreensão de Lutero, Cristo não abandonou o mundo à sua sorte quando voltou para junto do Pai, mas, liberto do tempo e do espaço, continua presente, como o vento que não enxergamos, mas cujos efeitos sentimos. Cremos que, na Santa Ceia, Cristo está presente de uma forma especial, concreta, visível. Cremos que Cristo está presente também, de uma forma especial, nos que têm fome e sede, nos que são estrangeiros e prisioneiros, nos que estão doentes e nus (Mt 25.31-46).
A presença do Espírito Santo é a presença de Jesus num mundo ainda não redimido, mas repleto de contradições, limitações, maldades, condicionamentos, ainda sob o domínio do pecado. A volta, a parusia de Cristo, acontecerá no fim dos tempos, quando deixarmos de ser prisioneiros do tempo e do espaço: o pecado, as contradições e os condicionamentos deixarão de existir. Esta é a esperança. Na expectativa de que Cristo voltará e instalará seu Reino definitivo, sem contradições e dores, damos testemunho de que esta é a vontade de Deus Pai. As contradições, o pecado, as limitações dadas pela nossa condição de seres humanos num mundo caído, mas amado por Deus, não desaparecerão como por mágica; perderão, no entanto, sua condição de absolutas, únicas, todo-poderosas. Cristo, o glorificado, o que voltou ao Pai, relativiza-as, desnuda-as como provisórias.
Sexta-feira Santa e Ascensão são ruptura – Sexta-feira Santa e Ascensão são ruptura e descontinuidade, morte e ausência de Jesus. Cristo não está presente de modo que dele possamos “adonar-nos” e manipulá-lo a nosso bel-prazer. Ele jamais só é “meu Jesus”, disponível para atender o meu egoísmo, os meus pedidos e desejos. Ascensão é ruptura. “Então uma nuvem o cobriu e não puderam vê-lo mais” (At 1.9).
O Espírito Santo é o elo entre o Jesus histórico e o Cristo escatológico, entre a sua memória e a promessa. Ele é a continuidade na descontinuidade.
4. Pistas para prédica
a – O mundo e a Igreja são prisioneiros do tempo e do espaço, das limitações, contradições e condicionamentos inerentes aos seres humanos. Pergunta pelo sentido do sofrimento, da vida, da morte.
b – O testemunho cristão acontece nessa condição de prisioneiros do tempo e do espaço, das limitações, maldades e condicionamentos inerentes aos seres humanos.
c – A Ascensão não nos rouba Jesus Cristo, mas o torna acessível a todas as pessoas, em todos os tempos e em todos os lugares, pois está junto do Pai, não mais sujeito ao espaço e ao tempo.
d – Ascensão, no entanto, também é ruptura e descontinuidade, morte e ausência. Ele não está disponível de tal modo que dele possamos dispor livremente. Ele é o Senhor. Não nos cabe saber a hora da volta de Cristo. Ascensão e Sexta-feira Santa se equiparam e se equivalem: à morte nesta segue a ressurreição; à volta de Cristo ao Pai segue a doação do Espírito Santo.
e – Jesus Cristo continua presente em nosso meio através do Espírito Santo, continua a sofrer com as limitações e contradições de nosso mundo e de sua Igreja, continua a amá-los com a mesma intensidade e a morrer diariamente. Somente a partir da semente enterrada nascem novas sementes. “Se o grão não morrer debaixo da terra, não virá a espiga a alegrar a mesa. Se o grão não resistir ao vento e à chuva, não terá o vinho o vigor da uva” (PC 202.1 – A. Trevisan).
f – A vida não se reduz a um breve tempo e a um espaço limitado, mas é mais ampla, transpõe tempo e espaço. Ela não se esgota num mundo limitado. O Reino de Deus é possibilidade de vida agora e eternamente. Quem quer dele participar agora, no entanto, terá que, em meio a contradições e dores, dar sinais de que ele já está presente.
5. Subsídios litúrgicos
Para cantar ou orar: “Em tuas mãos os nossos dias estão bem guardados, Senhor. Pertence-te a nossa história. O tempo nos dás por amor. Abriga-nos em tua graça se o tempo quer entardecer. Que livres de medo sigamos, confiantes no amanhecer. Fica conosco, Senhor, em tempos de paz e de dor! Ajuda teu povo a seguir na fé, na esperança e no amor. Enquanto conosco andavas, ardia-nos o coração. Mas a insegurança e o medo bloqueavam nossa visão. O nosso caminho cruzavas no mais pequenino irmão. Quão mal nós te conhecemos! Por isso pedimos perdão. Fica conosco, Senhor, porque o dia já declinou. E vem nos abrir a visão, partindo conosco o pão. Segundo a tua promessa, permite que teu povo espere um novo céu e uma nova terra, onde possa a justiça habitar. E dá que teu povo na terra unido te sirva bem mais, mostrando sinais do teu Reino, testemunhando a paz. Fica conosco, Senhor. Envia teu Consolador. Ampara na via da cruz teu povo seguindo Jesus” (Rodolfo Gaede Neto).
Bibliografia
EHLERT, Heinz. Proclamar Libertação XI. São Leopoldo: Sinodal, 1985. p. 242-248.
FRANK, Valdir; KÄLLSTEN, Delcio. Proclamar Libertação XX. São Leopoldo: Sinodal, 1994. p. 155-163.
OESSELMANN, Dirk. Proclamar Libertação XXIV. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 168-172.
WACHS, Manfredo Carlos. Proclamar Libertação XXVI. São Leopoldo: Sinodal, 2000. p. 182-189.
SCHILLE, Gottfried. Die Apostelgeschichte des Lukas, in: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Berlim: Ev. Verlagsanstalt Berlin, 1984.
VOIGT, Gottfried. Das Heilige Volk, Reihe II, in: Homiletische Auslegung der Predigttexte. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1979.
Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia