Proclamar Libertação – Volume 20
Prédica: Lucas 17.1-10
Leituras: Habacuque 1.2-3(4)-2.1-4 e 2 Timóteo 1.3-8
Autor: Nilton Giese
Data Litúrgica: 20º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 22/10/1995
Habacuque atuou como profeta entre os anos 605 e 597 a.C. Os dominadores do mundo conhecido por Habacuque eram os assírios. Eles haviam destruído e ocupado o Estado de Israel em 722 a.C. O antecessor de Habacuque, chamado Naum (650-610 a.C), que era contemporâneo do rei Josias (2 Rs 22-23), cantou de alegria pela derrota dos assírios. Os vencedores foram os babilônios. Naum via nos babilônios a presença da vingança de Javé. Habacuque, no entanto, tinha outra opinião. Ele ficou alarmado com o tremendo poderio dos babilônios. Logo percebeu que a opressão continuava a mesma. O que mudou foram os opressores. Constatou que de certa forma as coisas até pioraram. Em sua inconformidade, Habacuque interpelou a Deus como Jó e disse: Senhor, como podes contemplar calado os criminosos e guardas silêncio enquanto o malvado destrói os que são melhores do que ele? (He 2.13.)
Enquanto isso, em 2 Tm 1.3-8 Paulo exorta seu amigo Timóteo a resistir diante das provas e a manter-se firme. Exorta-o a buscar forças para a resistência em Cristo, que destruiu o poder da morte e, pela mensagem da salvação, trouxe à luz a vida imortal (2 Tm 1.10).
A frase introdutória de Lucas deixa claro que a perícope se dirige aos discípulos (v. 1a) e fala de um tema que é inevitável na comunidade cristã: o escândalo. O substantivo skandalon não pertence ao grego clássico. É no período helenístico que ele incorpora seu significado dificultar, colocar tropeços no caminho, romper a lealdade de uma pessoa para com outra.
É impossível que não venham os skandalon, porque, ao que parece, fazem parte do plano de Deus (Mt 18.7). Também a pregação do evangelho produz skandalon. Eles só acabarão no tempo da consumação (Mt 13.41). No entanto, sobre a pessoa que serve de instrumento para skandalon recai o ouai (ai). Seu lïm é a perdição. A radicalidade do castigo denuncia a gravidade do pecado (v. 2). Por isso, é preciso impedir que o skandalon se insinue entre as pessoas. É preciso cortar-lhe o caminho.
O skandalon imperdoável é aquele que se pronuncia contra a salvação dos mikroi (impotentes, desamparados, desvalidos, pobres), que vê neles um obstáculo (Lc 7.22-23). Deus preparou seu reino para os mikroi (6.20s.). Diante de Deus, cada um deles tem um valor supremo, pois sua vontade é que nenhum deles se perca (Mt 18.14).
Já no AT era comum a constatação de que aquele que não observa a lei de Deus vai bem e enriquece, enquanto que o pobre que tem sua esperança em Deus acaba levando uma vida miserável (SI 73). Assim também acontecia na Igreja primitiva. Os mikroi nem sempre foram tratados como os eleitos de Deus, como os louvados na pregação do evangelho (Tg 2.5, 12s.). O apóstolo Paulo admoesta os coríntios a esse respeito: Não tendes porventura casas onde comer e beber? Ou menosprezais a igreja de Deus e envergonhais os que nada têm? Que vos direi? Louvar-vos-ei? Nisto certamente não vos louvo (1 Co 11.22).
O rico sem piedade é o skandalon para o pobre. O discípulo de Jesus deve estar alerta para não dar esse tipo de skandalon. Os que praticam o skandalon contra o pobre são chamados de filhos do demônio (Mt 13.38,41). Aqueles que querem ser fiéis a Cristo e cumprir sua vontade devem resistir a esse tipo de skandalon (Mt 7.23).
A comunidade dos discípulos não é uma comunidade de santos. Não está isenta de falta e de pecados. Por isso, quando alguém peca contra outro, a vítima não deve ficar impassível. Sua primeira atitude como vítima é reclamar e repreender o pecador. Não ser condescendente com o pecado. Denunciá-lo. Ficar calado, sofrendo como vítima sem reclamar, é colaborar com o pecador, é dar razão ao pecado e concordar com ele. Não aborrecerás o teu irmão no teu íntimo, mas repreenderás o teu próximo e por causa dele não levarás sobre ti pecado (Lv 19.17).
A boa palavra de admoestação induzirá a pessoa a corrigir-se. Se ela reconhece a sua culpa, sua falta, então é preciso perdoar-lhe. A comunidade se santifica quando um perdoa o outro, ainda que seja necessário perdoá-lo muitas vezes num só dia. Se um perdoar ao outro, também Deus lhes perdoará todo pecado. Pois é na admoestação, no arrependimento e no perdão que o povo de Deus se torna santo, se santifica.
Quem pode cumprir as exigências de Jesus? Jesus denuncia a opressão da lei e afirma que para cumprir a vontade de Deus é preciso transgredir a lei (Mc 2.1-28; 5.1-14; 7.1ss.; Lc 6.1ss). Quem pode ir contra a lei e ficar de consciência tranquila? Em outro momento em que Jesus fala com radicalidade, os discípulos lhe perguntam: Mas, então, quem pode ser salvo? e Jesus responde dizendo que o que é impossível para as pessoas é possível para Deus (18.26).
Também nessa perícope os discípulos falam. Eles compreendem que é preciso muita fé para cumprir o que Jesus pede. Por isso, esperam que ele lhes aumente a fé, que lhes dê a força necessária para que possam cumprir o que ele lhes pede. Aqui a fé não é necessariamente carismática como em 1 Co 13. Em Lucas a fé tem a ver com a capacidade de reagir diante da prédica de Jesus e de seus discípulos. Dessa forma, além de anunciar a salvação, Jesus lhes concede as condições para que possam praticar sua vontade.
O texto afirma que com a fé se vence o que é difícil. O grão de mostarda é a menor de todas as sementes (Mc 4.31). O sykaminos (sicômoro negro no v. 6) é uma árvore grande, de raízes profundas, que pode durar até 600 anos de pé. No entanto, uma só palavra proferida com o mínimo de confiança em Deus pode fazer com que essa árvore se transplante para o mar.
Deus mesmo dá a sua força divina para que se possa cumprir os imperativos de Jesus. O que é necessário é acreditar que em Jesus chegou o tempo de salvação (salus, no latim, de onde vêm as palavras salvação e saúde). Também o apóstolo Paulo afirma que, além de reconhecer a realidade como sendo de exclusão e de antivida, é fundamental discernir o tempo propício de salvação (Rm 3.21; 2 Co 6.2) Essa é a notícia de grande alegria: entender que em meio a tanta desgraça chegou o tempo da salvação (salvação da fome, da miséria, da marginalização…). A fé nos faz viver momentos de salvação. Ela nos faz alcançar algo sobre-humano.
As exigências desse agricultor ao doulos (escravo, servo) são irritantes. O escravo trabalhou o dia todo no campo. O agricultor ficou em casa. O escravo volta cansado, mas antes de comer precisa preparar a comida de seu dono e esperar que este se alimente, mas nem por isso se merece um muito obrigado. Na relação escravo-patrão, este faz valer todos os seus direitos.
(…) de todos estos los que más sufrian el desprecio o marginación, adernas de la explotación, eran los esclavos, sobre todo aquellos que vivian en las áreas rurales. (…) El esclavo no era persona, sino un objeto, (…) no puede contraer matrimonio, ni legalmente tiene família. Está asimismo excluído de los derechos patrimoniales: no puede ser proprietário, ni acreedor, ni deudor, ni comparecer en juicio para demandar o ser demandado. No puede hacer testamento ni dejar herederos de ninguna clase. Por los danos que le causen reclamará, como por los danos causados en las otras que le pertenecen lo mismo que el esclavo, su dueño. Si este le abandona, no por eso se hará libre; será simplesmente un servus sine domino, del cual, como de otra cosa cualquiera de la que su dueño se desprende, podrá apoderarse quien quiera (Elza Tamez, Contra toda condena, p. 73).
No entanto, a esse escravo sem valor e sem dignidade alguma Jesus toma como exemplo de disposição ao serviço cristão. Esse escravo ensina mais sobre a relação Deus-ser humano do que os fariseus e escribas. Estes ensinavam que a relação é de caráter contratual. Prestação de serviços por prestação de serviços. Se a lei é cumprida, se a pessoa cumpre os mandamentos de Deus, então ele a recompensará. Jesus descarta essa mentalidade. Não se podem fazer contratos com Deus. Não se pode exigir nada de Deus.
Essa história é dirigida aos apóstolos. Deixaram tudo para seguir a Jesus (5.11), cumpriram suas exigências radicais. Poderiam fazer valer sua prestação de serviços, conforme o ensinamento dos fariseus e escribas. Assim o fizeram em outra oportunidade (Mt 19.27). Mas Jesus anula esse tipo de mentalidade contratual. Por exemplo, na parábola dos trabalhadores na vinha (Mt 20.1-16).
As perícopes do texto e os textos de leitura nos trazem muitos temas e cada um deles certamente é oportuno para a reflexão comunitária. Também gostaríamos de refletir sobre temas importantes para a Reforma. Além disso, creio que a realidade da própria comunidade vai definir que tema merece mais tempo de reflexão.
Em qualquer desses temas, precisamos considerar que por trás da realidade desses tempos modernos está mui fortemente presente a justificação pelos méritos. O sistema de mercado neoliberal, que está orientado pelo critério da rentabilidade e preferência, apregoa a salvação por meio da lei do lucro máximo. Trata-se da lei do mérito. Todos aqueles que querem ser reconhecidos como sujeitos dignos diante do mundo e salvar-se a si mesmos, devem submeter-se a essa lei. No entanto, como a salvação se alcança pelos méritos, muitos ficam de fora da competição. Esses são os condenados da terra, os mikroi de hoje. Para eles não há perdão, porque o sistema de mercado não conhece a dimensão da graça e da fé.
Como, então, encontrar a imagem de Deus em meio a esse mundo de exclusão e morte?
Para que as pessoas recuperem sua imagem divina, isto é, a autêntica imagem humana, não basta apenas pronunciar a teologia da justificação pela graça c pela fé. Essa teologia precisa manifestar-se nas fronteiras da história humana. A justificação pela graça e fé é o anúncio de que chegou o tempo propício de salvação. No entanto, essa salvação precisa manifestar-se no corpo, na realidade. Porque assim como a injustiça provoca feridas mortais, da mesma maneira também a justificação e a graça devem mostrar suas marcas de vida fecunda. O encontro entre seres humanos e Deus se dá no espaço concreto. Aprendemos da Bíblia que Javé escolhe como lugar de encontro o êxodo e a cruz. Isto é, lá onde está o excluído, que grita a Deus seu abandono e clama por sua presença. Por isso, falar em salvação compromete com a salvação da miséria, da marginalização, da fome, do abandono, etc… Falar de salvação e justificação sem considerar essa realidade é discursar para o vazio. Ser justificado hoje implica recobrar que somos imagem de Deus, criados para a vida e para recriar a vida como justificados buscando a justiça.
FTTZMYER, Joseph. El Evangelio según Lucas; III; traducción y comentário. Madrid, Cristiandad, 1987;
GUERERO, Gonzalo M. de la Torre. Las parábolas como expresión simbólica de liberación (primer acercamiento al tema), RIBLA, San José, n- 9, 1991, p. 113-133;
STOEGER, Alois. El Evangelio según San Lucas; tomo segundo. Barcelona, Herder, 1979. TAMEZ, Elza. Contra toda condena; la justificación por la fé desde los excluídos. 2. ed. San José, DEI, 1993.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).