Proclamar Libertação – Volume 20
Prédica: João 6.28-40
Leituras bíblicas: Salmo 62
Autor: Roberto E. Zwetsch
Alocução para Sepultamento
Fazia alguns meses que acompanhávamos minha sogra junto ao leito de seu marido, gravemente enfermo. Ele contraíra um tipo de câncer há mais de dez anos. Naqueles meses o caso se agravara e agora ele estava muito mal. Seus últimos dias foram de muito sofrimento. Por ter tido um derrame muito tempo atrás, perdera a faculdade de falar. Este fato contribuía para aumentar, quem sabe, o seu sofrimento. Como expressar tudo o que ia na alma, no coração nesses momentos de angústia, de medo, de dor? Toda a família se solidarizou e lutou junto com ele até a hora do desfecho.
Alguns pastores o visitaram naqueles meses, dando-lhe apoio e uma palavra de consolo e esperança. Ninguém de nós poderá saber o que essas visitas significaram para ele. Mas sua esposa não esquece aqueles gestos de fraternidade numa hora tão difícil. Calou fundo em seu coração triste a palavra amiga e a oração da fé.
Na véspera do sepultamento, fui surpreendido com o pedido para dirigir a cerimónia fúnebre. Ela fora programada para se realizar na comunidade de origem de meu sogro. Seu corpo fora velado no interior da igreja, que ele ajudar a construir e onde, naquela manhã chuvosa, realizamos a oração de encomendação, durante a qual proferi a alocução que se segue. Devo acrescentar que foi difícil falar com voz clara e audível. Minha fala vinha embargada pela emoção e a tristeza. A igreja estava repleta, pois meu sogro era pessoa muito conhecida no lugar. Todos sabemos como um sepultamento mobiliza as pessoas nas comunidades do interior deste país, não importando o credo a que pertençam. O que dizer para aquelas pessoas? Que palavra anunciar para minha sogra, minha esposa, minhas cunhadas, netos, netas, os parentes, as pessoas amigas e conhecidas?
Naquela noite, dormi pouco, e, quando acordei, bem cedo, tomei o texto bíblico do Evangelho de João 6.28-40 e comecei a articular os pensamentos. Lembrei-me então de um texto que havia lido há anos atrás e que falava de um velório e uma aldeia. Tratava-se de uma novela de Gabriel Garcia Marques. Conhecera o texto por meio de um livro de Rubem Alves. E pensei que podia começar por aí: a fala da esperança se tece sobre o corpo de um morto que é mensagem para nós, os vivos.
O primeiro ponto era este: o corpo presente. Depois veio a palavra da fé: o corpo de Cristo que aquele corpo inerte nos lembra em toda a sua impotência. E porque é de Cristo, é corpo de vida, de ressurreição. Ali reunidos, somos esse corpo de Cristo, corpo comunidade animado pelo Espírito Santo. O terceiro ponto apontava para o corpo ausente: é preciso aprender a viver da saudade do nosso amor, saudade que nasce na ausência do amado. Essa ausência é oportunidade de desenvolver o dom precioso, a esperança que vem da fé. A vida vence a morte, ainda que tudo nos diga que não. Aí está colocada a graça de Deus. Aí entra o evangelho: Deus não quer que ninguém se perca, mas ressuscite no último dia. Este o contexto em que esbocei o que se segue. Evidentemente, as palavras não foram essas, mas o conteúdo, sim.
Vamos à alocução.
Prezados irmãos e prezadas irmãs:
Vamos ouvir no início desta meditação a leitura do Evangelho de João, capítulo 6, versículos 28-40, feita por um genro do Sr. Alípio.
Para nós, cristãos, o corpo é um bem precioso. Nós não desprezamos o corpo. Por isso, quando alguém entre nós morre, providenciamos um sepultamento digno e humano. Aqui temos o corpo de um irmão nosso que trabalhou na terra por quase toda a vida. Agora vamos devolvê-lo à terra que ele amou. Mas é importante lembrar neste momento a sua história, a sua vida. E, ao fazermos isso, acabamos falando de nós mesmos, da nossa história. Falar de um corpo é trazer a memória dessa vida. Nossa vida é memória presente.
Lembro aqui uma história contada por um escritor que falava de uma aldeia de pescadores num país distante. Um dia pela manhã, aconteceu algo que mudou completamente a vida pacata e monótona daquela aldeia. Apareceu na praia um corpo de um náufrago, um desconhecido. Era necessário enterrá-lo, e as mulheres foram as primeiras que começaram a preparar o corpo para o seu último repouso. Mas, ao procederem assim, passaram a tecer sobre aquele corpo desconhecido uma história que nem suspeitavam. Falando da estória daquele corpo, na verdade, falaram sobre si mesmas. E seus maridos e filhos e filhas fizeram o mesmo. E, no fim, da (ala sobre o morto uma vida nova começou a nascer. As pessoas olharam o seu passado e imaginaram que tudo podia ser diferente. E se deram conta de que, se assim podia ter sido, o futuro podia igualmente ser diferente, e a aldeia nunca mais foi a mesma.
O corpo presente deste irmão é um sinal de nossa finitude. Ele nos diz que um dia estaremos no seu lugar. Por isso choramos. Por ele, que por um pouco ainda está conosco, mas já não vive. E por nós, que o perdemos e logo não mais o veremos. E ainda porque um dia também morreremos. Mas é bom chorar! Porque ao chorar nos damos conta de que o corpo é sagrado. O corpo é para a vida e não para a morte.
Este corpo aqui presente nos lembra de um outro corpo: o corpo de Cristo. Ele também sofreu e morreu. É pão do céu que dá vida ao mundo. O corpo nos lembra que a Santa Ceia nos coloca repetidamente diante da morte e da vida. A morte é uma luta, o último inimigo, que precisa ser vencido para que a vida prevaleça. E a vida é dom de Deus. Em Jesus Cristo, a vida venceu. Ele ressuscitou pela força de Deus. Esta é a promessa que recebemos: que se com ele morremos, também com ele viveremos.
De certo modo, hoje representamos aqui este corpo de Cristo, morto e ressuscitado. Pelo Espírito de Cristo, somos o seu corpo que acolhe em seu meio o corpo deste nosso irmão. Nesta hora difícil, como corpo de Cristo, como Igreja de Deus, afirmamos a vitória da vida sobre a morte, ainda que tudo pareça o contrário. E a vitória não é outra senão a nossa fé. Nós cremos e nisto está toda a nossa esperança.
Esta é a ousadia cristã. Crer que a palavra é capaz de suscitar a fé, de chamar da morte para a vida. E a palavra é palavra de Deus. Palavra de Vida. Palavra que transforma e constrói um novo mundo, uma nova realidade, hoje e aqui.
Como cristãos ousamos colocar nossa confiança na palavra última de Deus. Não nas nossas palavras, que passam como a erva dos campos. Mas naquela Palavra que se encarnou e que venceu a morte, em favor de nós e de todas as pessoas deste mundo.
Mas logo mais este corpo-mensagem, o corpo deste nosso irmão será enterrado e, então, definitivamente separado de nosso meio. Ficará apenas a dor de sua ausência. Será um corpo ausente. Como suportar essa ausência? Para isso recebe mós a fé. É pela fé que aprendemos a viver na ausência daqueles que amamos. A saudade do corpo amado pode ser tanta que, por vezes, pensamos que vamos morrer também. A saudade pode fazer morrer. E por isso que nos reunimos aqui. Para falar sobre este que amamos e buscar na palavra de Deus a força que nos vai ajudar a continuar a viver e a confiar e a amar. Pois, se vivemos a saudade da ausência, nós a vivemos pela fé e na fé. A vida vence a morte. Nisto nos agarramos, não por nossa razão ou força, mas por causa da palavra de Deus. E se assim é, sabemos o que é viver da graça de Deus. Saudade, neste sentido, é lambem graça de Deus. Saber viver na saudade é um aprendizado. Para muitos esse aprendizado começa cedo, para outros bem mais tarde. Mas, para uns e outros, importante é saber viver a saudade da ausência do ser amado com fé naquele que oferece vida, e vida abundante.
A vontade de Deus, como diz João, é que’ ninguém se perca, é que cada um lenha a vida eterna, a vida autêntica, a vida que vence a morte, e que ressuscite no último dia.
Com Jesus, aprendemos a caminhar no caminho de Deus. Por isso e baseados nessa Palavra, podemos seguir, ainda que a tristeza nos assalte e que a saudade nos corroa. Não queremos consolo barato, mas buscamos aquela força que nos permite viver com olhos abertos e coração confiante. Essa força é a fé que nos dá. O que crê em mim, jamais terá sede.
Bebendo dessa água, saberemos suportar tristeza, dor e ausência. Pois viveremos com os olhos postos naquele que é capaz de dizer: De fato, a vontade de meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nele crer, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. Amém.
— Hino.
— Salmo 62.
— Oração.
— Alocução.
— Hino.
— Intercessão e Pai-Nosso.
— Sinal do óleo.
— Voto de paz para acompanhar o corpo do/a falecido/a ao cemitério. Bênção.
Sinal do óleo. Como sinal da fé da comunidade na palavra e na força de Deus, coloquei óleo comum de amêndoa num recipiente sobre o altar e com ele fiz o sinal da cruz no rosto do falecido e depois na fronte de minha sogra e suas filhas, dizendo: A paz de Cristo seja contigo e te dê forças e muita fé! Após este gesto, quem quisesse podia fazer o mesmo.
Sugestão de Salmo: Em quem confiar?
Em meio aos meus dias de dor pus-me a meditar:
em quem porei a minha confiança?
Encontrei no Livro um canto
que dizia:
Somente em Deus, ó minha alma,
espera silenciosa;
dele vem a minha salvação.
Só dele, a minha esperança.
Arrisquei o que pude
e confiei no Deus da vida.
Um tempo e mais um tempo
e então compreendi:
De Deus depende a minha salvação
e a minha glória.
Querem derrubar o homem justo
e não cansam de lisonjeá-lo
com promessas, louvores e prestígio.
Mas o seu coração não aderiu.
Na sua solidão
confiou naquele que vem
e não se deixou abater.
Feliz é o homem que confia
na Rocha, no Deus Libertador.
Este não será confundido
na hora cristalina.
(In: Vigília; Salmos para Tempos de Incerteza)
ALVES, Rubem. Variações sobre a Vida e a Morte; a Teologia e a Sua Fala. São Paulo, Paulinas, 1982;
ZWETSCH, Roberto E. Vigília; Salmos para Tempos de Incerteza. São Leopoldo, Sinodal, 1994.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).