Em 2025, igrejas cristãs em todo o mundo celebram os 1700 anos de uma confissão de fé decisiva para o cristianismo: o Credo Niceno.
Império Romano, século 4. Neste Império, que abrangia territórios na Europa, Ásia Menor e norte da África, o cristianismo se espalhava e já agregava em torno de 10% da população. Isto aconteceu em obediência à tarefa dada por Jesus: “vocês receberão poder, ao descer sobre vocês o Espírito Santo, e serão minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até os confins da terra” (Atos 1.8).
Por muito tempo, a fé cristã foi considerada uma superstição ilícita e subsistiu às margens da sociedade. Houve períodos de perseguição a grupos cristãos. Pessoas foram presas, torturadas e mortas por confessarem Jesus Cristo como Senhor. Apesar desta conjuntura desfavorável, muitas comunidades se formaram nas diferentes regiões do Império Romano. No ano de 311, finalmente, um edito de tolerância pôs fim às perseguições. Logo depois, em 313, decretou-se a liberdade total de culto.
As perseguições terminaram, mas o cristianismo enfrentava vários desafios internos. O maior deles estava relacionado aos conteúdos da fé, especialmente no que diz respeito à pessoa de Jesus Cristo. Jesus era humano? Jesus era divino? Era humano e divino?
A doutrina da Trindade já estava estabelecida a partir do Credo Apostólico. Todavia, o Credo Apostólico não aprofundou questões sobre a divindade de Jesus. Isto deixou a porta aberta para diferentes interpretações, muitas delas contraditórias. Disputas teológicas e rivalidades cresciam. A unidade cristã estava em perigo. Neste contexto, surge o Credo Niceno. Em entrevista ao Portal Luterano, o Pastor Dr. Martin Norberto Dreher conta detalhes sobre o desenvolvimento deste Credo. Eis a entrevista:
Para início de conversa, pode nos dizer o que é um “credo”?
“Credo” é o presente do indicativo do verbo latino crer e significa: eu creio. Na Igreja Antiga, quando do Batismo, a pessoa que ia ser batizada era perguntada:
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- Crês em Deus Pai, Todo-poderoso? e respondia: credo (creio);
- Crês em Jesus Cristo, seu filho unigênito? e respondia: credo (creio);
- Crês no Espírito Santo? e respondia: credo (creio).
Credo era uma confissão de fé batismal. Cada vez que proferimos o Credo, também estamos confessando aquilo que já foi confessado em nosso Batismo.
E por que o Credo Niceno recebeu este nome?
Porque é uma confissão formulada na localidade de Niceia, que hoje se chama İznik e fica na atual Turquia. Na época, Niceia era a residência de verão do Imperador Constantino. Neste lugar, o próprio Imperador convocou e dirigiu um Sínodo (Concílio) de bispos de todo o Império Romano para resolver a questão: Quem é Jesus Cristo? A abertura do Sínodo aconteceu no dia 20 de maio do ano de 325.
Constantino era cristão?
Desde o ano de 312, Constantino foi experimentando progressivamente a fé cristã e convenceu-se que Jesus Cristo era a revelação de Deus. Ele adotou o símbolo tomado das letras iniciais de Cristo (em grego: XP) e resolveu tornar a fé cristã religião oficial do Império Romano.
Acontece, porém, que não havia unanimidade na resposta à pergunta: Quem é Jesus? Aliás, a resposta a essa pergunta divide o mundo cristão até os dias de hoje. E devemos lembrar que quem fez a pergunta foi o próprio Jesus: “E vocês, quem dizem que eu sou?” (Mateus 16.15). Pedro respondeu com a confissão: “O senhor é o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mateus 16.16). O Apóstolo Paulo respondeu com as palavras: “Jesus é o Senhor” (1 Coríntios 12.3). Para o cristianismo do primeiro século, essas respostas foram o suficiente.
E por que surgiram outros credos?
À medida em que a fé cristã foi tendo contato com o mundo fora da Palestina, as confissões de Pedro e Paulo tiveram que ser interpretadas e aprofundadas. As pessoas cristãs foram – e continuam (!) – forçadas a fazer teologia, a dar razões de sua fé, de seu Credo. Tiveram que explicar o que significa crer em Deus, em Jesus, no Espírito Santo. Assim foram surgindo declarações de fé, tais como o Credo Apostólico.
Crer em Deus significa dizer que ele é o todo-poderoso, o Criador do céu e da terra. Nosso mundo não é criação de um outro deus. Justamente esse nosso mundo é o mundo amado por Deus! Jesus Cristo é o Filho de Deus, que nasceu de Maria por obra do Espírito Santo. Ele realmente morreu e foi sepultado. Sua morte não foi aparente. Da mesma forma, ele ressuscitou de fato. Está com Deus e voltará para o juízo. Igreja, perdão dos pecados e a ressurreição que aguardamos são obra do Espírito Santo. Esse Credo, normalmente confessado nos cultos da IECLB e de outras denominações, foi formulado por volta do ano 150, em Roma.
Mas esta confissão de fé ainda não era suficiente?
Quanto mais a fé cristã penetrava no mundo do Império Romano, tanto mais se via confrontada com a filosofia e com o pensamento grego. Qual era a natureza de Jesus? Qual a sua relação com o Pai? O que significava, por exemplo, dizer que Jesus era “Filho”? Houve quem dissesse que Jesus foi “adotado” por Deus e que a sua grandeza moral vinha do fato de que Deus agia nele. Mas Jesus não seria Deus, assim como o Pai. Ou seja, não era essencialmente igual ao Pai. Jesus era uma criatura de Deus, feita antes de todos os tempos. Muitas pessoas aceitaram essa explicação e pensavam que isto preservava o monoteísmo (temos um só Deus!).
O problema, porém, era a confissão que vinha desde os apóstolos Pedro e Paulo: “Jesus é o Senhor!”. Em grego, a palavra “Senhor” era “Kyrios“. No hebraico, era “Adonai“, a mesma expressão utilizada para se referir a Deus e evitar que se usasse o seu nome em vão. Portanto, dizer que Jesus é o Senhor, significava também dizer que Jesus era Deus. Estavam formados dois partidos que incendiaram 10% dos habitantes do Império Romano por volta do ano 325. Um grupo dizia que Jesus era Deus, o outro negava a divindade plena de Jesus.
Como entra Constantino nesta história?
Constantino via que a fé cristã era a religião que mais crescia e queria torná-la base do seu Império. Isso só poderia acontecer se houvesse unanimidade. Tinha que se resolver qual era a relação de Jesus com o Pai. Jesus foi um simples homem, adotado pelo Pai, que morreu na cruz e ressuscitou? Ou foi Deus quem morreu na cruz e ressuscitou? Quem foi rejeitado na cruz: um homem ou o próprio Deus? Constantino convocou um Sínodo, um Concílio, para que os bispos dissessem quem é Jesus.
Assim como o Credo Apostólico, o Credo Niceno possui três partes, ou três artigos. O que eles dizem a respeito de Deus?
Os três artigos afirmam que Deus é um só. Ele é o Criador. Ele gerou Jesus, que é Deus de Deus, Luz de Luz. É Deus como Deus, criador com o Pai. Jesus é Deus que sai de si e se torna pessoa humana. Por nós morre e ressuscita, e voltará para o juízo. Deus é Espírito Santo. Note-se que o terceiro artigo é breve, pois não está em discussão. No centro da discussão do Credo Niceno está a pessoa de Jesus. Quem é Jesus? O Credo Niceno afirma que ele é igual a Deus porque tem a mesma essência de Deus.
Em grego, a palavra “essência” é “ousia“. A partir do termo “ousia“, os formuladores de Niceia afirmaram que Jesus é homoousion to patri, ou seja: de uma só substância com o Pai. Com isso confessavam que foi Deus quem morreu por nós na cruz e por nós ressuscitou. O Imperador Constantino se mostrou satisfeito e publicou o Credo de Niceia como lei imperial.
No Concílio de Constantinopla, o Credo Niceno passou por uma revisão. Houve alguma alteração?
Após o Sínodo de Niceia, as discussões continuaram. Em Niceia foi possível fixar a divindade do Filho. Era necessário aplicar as resoluções de Niceia também ao Espírito Santo. Isso foi tarefa de uma nova geração cristã e de um novo Concílio. Desta vez, o Concílio aconteceu em Constantinopla, na atual Turquia, no ano de 381. Em Constantinopla foram feitos, então, acréscimos ao Credo de Niceia, surgindo o que passou a ser designado de Credo Niceno-Constantinopolitano.
Qual é a importância do Credo Niceno para as igrejas cristãs hoje?
Ele é medida, juntamente com o Niceno-Constantinopolitano e outros credos antigos, para nossas afirmações a respeito de Deus. O credo apresenta, de forma resumida, o conteúdo da nossa fé. Ele fala de um Deus que não fica fechado em si, depois da criação do mundo, mas que sai de si para a preservação da Criação e dos seres criados e que permanece fiel à sua obra. É o Deus trinitário.
Qual é a base de fé da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)?
Em sua Constituição, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil considera sua base as Sagradas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento, os Credos da Igreja Antiga e a Confissão de Augsburgo Inalterada. Em suas congregações, o Catecismo Menor de Lutero está em uso. Ao sublinhar a unidade de Antigo e Novo Testamento, acentua que o Deus do Antigo Testamento é o Pai de Jesus Cristo e que o todo da Sagrada Escritura deve ser lido e interpretado a partir de Jesus Cristo. Quem é esse Jesus Cristo, quem é o Espírito Santo, quem é esse Deus trinitário, a IECLB considera testemunhado no Credo Niceno-Constantinopolitado, no Credo Apostólico e no Credo Atanasiano, formulado contra as pessoas que negam a Trindade.
Há alguma outra questão relacionada ao Credo Niceno, que considera importante mencionar?
Especialmente no Brasil é importante termos clareza a respeito do Deus trinitário e, em particular, quanto à pessoa de Jesus.
Martin N. Dreher é Pastor da IECLB e reside em São Leopoldo/RS. Foi professor na Faculdades EST e na Unisinos. É historiador da igreja e autor de diversos livros e artigos. Dreher concedeu a entrevista por e-mail ao coordenador do Portal Luterano, Pastor Dr. Emilio Voigt.