“Dúvida sobre o Decálogo” na crônica Elis Regina e a castidade de Carlos Heitor Cony
Carlos Heitor Cony chama a atenção para a fantástica história percorrida pelo Decálogo (ou Dez Palavras) desde seu nascedouro na Bíblia Hebraica até nossos dias, embasando declarações do Papa Bento 16 para a juventude. A cultura ocidental foi fortemente moldada a partir desse punhado de 10 máximas do antigo Israel via cristianismo e judaísmo. Mandamentos do decálogo também encontraram recepção no Alcorão, influenciando a ética de povos e culturas da fé islâmica. Mesmo a carta magna dos direitos humanos ainda bebe dessa fonte dos 10 mandamentos. Essa longa história de efeitos positivos protegendo vidas, possibilitando convívio e respeito entre diferentes provavelmente terá novos desdobramentos dando sua contribuição na luta pela sobrevivência do planeta.
Não esqueçamos que o decálogo também produziu páginas sombrias na história de sua recepção. Lembremo-nos do “Honra teu pai e tua mãe…” usado indevidamente para justificar uma educação repressora e autoritária, esquecendo que o mandamento visava à proteção e previdência dos membros idosos da grande família. Outras vezes este quarto mandamento servia de base ideológica para manter uma população submissa a autoridades perversas em suas intenções de governo.
Há pouco tempo a pesquisa trouxe à tona que originalmente o “Não furtarás” pretendia coibir o roubo de pessoas para serem escravizadas e não servir de base para defender a propriedade privada como algo sagrado? A história do escravismo registra a conivência da maioria da igreja cristã no Ocidente que em suas fileiras recita um catecismo com um mandamento que interdita o roubo de gente para ser escravizada. Se essa compreensão tivesse estado presente nas explicações deste mandamento em nossos catecismos, o sistema escravocrata teria sobrevivido por séculos sem fim na história do Brasil?
A história da pesquisa do Decálogo na Bíblia Hebraica, com sua recepção no Novo Testamento, no Talmude e no Alcorão, provavelmente enriquecerá ainda mais a busca pelo sentido dessas máximas do antigo Israel.
O cronista focaliza o 6º mandamento do Decálogo “Não pecarás contra a castidade” a propósito da fala à juventude de Bento 16 no Pacaembu sobre o tema castidade no contexto da ética sexual. Um leitor atento percebe que a versão mencionada como “mandamento mosaico” não confere com as que ele encontra nas traduções autorizadas das tradições católica e protestante. Predominam versões a partir do hebraico como: “Não adulterarás”(Sociedade Bíblica do Brasil) ou “Não cometerás adultério”(Bíblia de Jerusalém). Daí a pergunta: O tema castidade já estava no horizonte deste mandamento desde os primórdios da fé israelita? Não seria antes uma dimensão que ele adquire durante a história de sua recepção, especialmente nos catecismos da igreja cristã, tanto na católica romana quanto nas confissões oriundas da reforma do séc. XVI?
Não é possível perseguir aqui a história da interpretação deste mandamento desde Agostinho até nossos dias e dimensionar sua contribuição para a ética sexual com inspiração evangélica. Certamente valerá uma pesquisa.
Limito-me apenas a poucas considerações sobre o categórico “Não adulterarás” e seu provável sentido no contexto sócio-histórico do antigo Israel. O verbo hebraico na`af, empregado na versão de Ex 20.3 e na sua recensão um pouco modificada em Dt 5.18, significa manter relações sexuais com a mulher de outro homem, podendo ser casada ou apenas comprometida através do dote pago pelo noivo; daí seu significado adulterar, cometer adultério.
A relevância do tema é tamanha que ele aparece em outro mandamento, como bem observou Carlos Heitor Cony. Desta vez a mulher aparece numa relação de “objetos” pertencentes ao próximo, cuja cobiça é interditada. Na versão de Dt 5.21, a mulher do próximo encabeça essa lista. A posição da mulher nessa estrutura patriarcal que permeia o texto – longe de estar superada – suscita questionamentos ainda em nossos contextos androcêntricos. É propriedade do homem que precisa ser protegida diante da cobiça de outro que quer apropriar-se de seus bens? A hermenêutica feminista da Bíblia deverá nos ajudar a clarear essas expressões aviltantes da estrutura patriarcal.
Em todos os casos, essa dupla ocorrência do tema aponta para feridas no convívio inter-humano e detecta focos de injustiça no relacionamento homem e mulher no contexto da formulação e na codificação do mandamento de proibição. As vítimas gritam por socorro exigindo proteção através de mandamento e lei.
O antigo Israel não era cego para ameaças que poderiam destruir a relação de amor entre homem e mulher. O convívio era muito próximo como o era na estrutura patriarcal. Sob a autoridade de pater famílias conviviam várias gerações, daí a necessidade de regras claras para proteger as sub-unidades, formada pelos filhos casados, que conviviam intensamente como núcleo de produção (agricultura, artesanato, comércio!). Homem e mulher aptos para o casamento formavam uma unidade inviolável e uma relação de amor que exigia respeito e proteção primeiramente dos outros membros da família extensa mas também da comunidade maior em que estavam inseridos. A poligamia era antes a exceção e reservada para quem pudesse dar sustento e dedicação igual a todas.
As interferências na relação de amor, provocadas por outros homens, tornando a mulher vítima da violência masculina, são tratadas com muito rigor pela legislação. São taxativamente consideradas “…infâmia em Israel” (Gn 34.7). Ou sem qualquer concessão, um ato de violência desta ordem é declarado como inadmissível com as palavras: “Isso não se faz em Israel” (2Sm 13.12).
São especialmente vozes proféticas que denunciam situações insustentáveis onde pessoas fracas são vítimas de poderosos. Nesse sentido o profeta Amós desmascara seus concidadãos praticantes de violência: pai e filho abusando da mesma moça (Am 2.7). Ou ainda em pleno séc. 8 a.C. Oséias desnudando uma sexualidade que dicotomiza sexo e amor, fragmenta vivência sexual de uma relação de reciprocidade, cumplicidade e amor. A iniciação na vida sexual, segundo seus contemporâneos, acontece em ritos de fertilidade em pleno culto (Os 4.13-14); sacerdotes e estranhos mantinham relações com as mulheres. Oséias denuncia essas práticas como adultério e prostituição e completamente incompatível com a dignidade humana e o amor singular com esse povo foi conquistado por seu Deus (Os 11). Culto e sexo, religião e sexismo continuam a nos intrigar. A luta do antigo Israel por uma sexualidade integrada na relação de amor aparece na denúncia profética, na lei mosaica e é expressa em prosa e verso (Ct 6 e 8). Apesar da sombra provocada pela estrutura patriarcal, ganha espaço uma compreensão de ser humano pautada na inteireza e unidade que não permite separar corpo e alma, sexo e amor, indivíduo e comunidade, Deus sem povo. Atento aos riscos e às ameaças que atingem a relação de amor, Israel percebe vontade de seu Deus nesta visão e a codifica na máxima “Não adulterarás”. Para evitar que se a considere opinião particular deste ou daquele grupo, o mandamento é levado ao locus clássico da revelação de Deus em Israel, isto é, no Sinai. Não há estrutura social, política ou religiosa em Israel que possa sobrepor-se a essa máxima e as outras nove; reis, sacerdotes e patriarcas e outros poderosos de plantão terão que se curvar diante da lei de seu Deus. Mesmo Moisés é visto apenas como mediador dessa vontade de ver relações de amor preservadas.
Talvez aí resida a maior contribuição deste mandamento do decálogo: fazer valer a vontade de preservar relações de amor e não permitir a fragmentação mas estimular uma vivência em liberdade.
À nossa geração cabe escrever mais um capítulo da recepção desta máxima, com os olhos muito abertos para novas perguntas que a pesquisa sobre a sexualidade humana vem lançando. Recitar respostas elaboradas por outras gerações, mesmo que venham das Escrituras Sagradas, nem sempre ajudam a preservar compromissos de amor. A ética sexual pode ter como norte essa máxima do amor “que não procura seus próprios interesses” (1Co 13), sem fechar-se para novas formas de amor, novas formas de controlar natalidade e de entender a complexidade e a riqueza do relacionamento humano.
Renatus Porath
é doutor em teologia pela Universidade de Munique / Alemanha; pastor luterano; área de concentração: Antigo Testamento e antigo Oriente; atua em cursos de graduação e pós-graduação em Teologia e Ciências da Religião (em São Paulo e no sul do país); leciona na Escola Dominicana de Teologia em S. Paulo