No dia 30 de outubro, à véspera do dia da Reforma, os pastores da IECLB Dr. Walter Altmann e Dr. Rudolf von Sinner participaram de audiência pública na Comissão de Educação e Cultura do Senado Federal. Altmann participou de forma online, enquanto von Sinner esteve presencialmente no Senado.
O assunto em pauta foi o Projeto de Lei (PL) 4606/2019, de autoria do Deputado Sargento Isidório (Avante, BA), aprovado pela Câmara dos Deputados em novembro 2022. O projeto veda qualquer alteração, adaptação, edição, supressão ou adição nos textos da Bíblia Sagrada.
Altmann e von Sinner participaram pela sua experiência na inserção acadêmica e pública da Teologia, mediante indicação da Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião (ANPTECRE), cuja presidenta atual é a Pastora Dr.ª Claudete Beise Ulrich (Faculdade Unida de Vitória).
O que diz o projeto aprovado na Câmara dos Deputados
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Fica vedada qualquer alteração, adaptação, edição, supressão ou adição nos textos da Bíblia Sagrada, composta pelo Antigo e pelo Novo Testamento, em seus capítulos e versículos, garantida a pregação do seu conteúdo em todo o território nacional.
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
CÂMARA DOS DEPUTADOS, 29 de novembro de 2022
Especialistas contestam o Projeto de Lei
Pela primeira vez em toda tramitação do projeto, houve a convocação de peritos do assunto. Entre eles estavam um especialista em direito constitucional e sete teólogos. A audiência foi presidida pela Senadora Damares Alves (Republicanos, DF).
Todas as apresentações de especialistas convergiram em rejeitar o referido PL por dois motivos básicos:
Primeiro, porque é inconstitucional o Congresso Nacional legislar em assuntos de religião, conforme a laicidade do Estado definida pelo Art. 19 inciso I da Constituição Federal.
Segundo, porque o objeto de proteção não está claro. É notório que existem bíblias com diferentes números de livros. As bíblias em uso nas igrejas protestantes e evangélicas possuem 66 livros, enquanto as bíblias católicas têm 73. Igrejas ortodoxas do Oriente possuem bíblias com até 81 livros.
Em termos de transmissão histórica, é necessário considerar que há cerca de 12.000 manuscritos de textos bíblicos. A grande maioria deles é oriunda apenas do século IV em diante. Ou seja, não existe um texto original da Bíblia. O texto que chegou até nós é produto de cópias e estas não são idênticas, embora a grande maioria das variações seja mínima. Os documentos mais antigos encontrados até hoje remontam ao segundo século e são apenas fragmentos de cópias.
Além disto, há uma grande variedade de traduções somente para o português e traduções em centenas de outras línguas. Traduções nem sempre conseguem representar com exatidão o sentido primordial de um texto. Uma tradução é também uma forma de interpretação.
Não existindo “o” texto da Bíblia de forma original e inequívoca, o Congresso Nacional teria que estabelecer a versão da Bíblia que receberia a proteção prevista no PL. Isto significaria uma ingerência muito forte do Estado na liberdade religiosa, pois cada tradição cristã pode definir qual a Bíblia quer usar.
Acréscimos que fazem sentido
Altmann mencionou a tradução da Bíblia por Martim Lutero, concluída em 1534. Ao traduzir Romanos 3.28 para o alemão (o ser humano é justificado pela fé, independentemente das obras da lei), Lutero acrescentou a palavra “somente”, que não se encontra no texto grego. A argumentação de Lutero era a seguinte: se o ser humano é justificado independentemente das obras da lei, como o texto grego diz, então logicamente é justificado somente pela fé. Esta interpretação “se transformou em pilar central do entendimento do evangelho por parte de todas as igrejas oriundas da Reforma”, afirmou Altmann.
Von Sinner, por outro lado, se debruçou sobre Atos dos Apóstolos 8.26-40 que narra o encontro do apóstolo Felipe com o tesoureiro da rainha da Etiópia. No final da conversa, o tesoureiro pede o batismo. Segundo as versões mais antigas e confiáveis, logo desceram da carruagem e Felipe procedeu ao batismo. Outros manuscritos inserem um versículo adicional: “Se o senhor crê de todo o coração, é claro que pode. E o funcionário disse: Sim, eu creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus.” Em muitas Bíblias, este versículo consta entre colchetes, justamente para indicar que não é unanimidade entre os manuscritos disponíveis.
Do ponto de vista da transmissão histórica, o versículo adicional é um acréscimo. Do ponto de vista teológico, a adição faz sentido. Afinal, um batismo de pessoa adulta pressupõe uma confissão de fé, conforme a prática das primeiras comunidades. “Assim, fica claro que a dinâmica de interpretação, reinterpretação e alteração do texto bíblico já é de longa data, registrada na própria Bíblia”, afirmou von Sinner.
Mais informações
O Pastor emérito Prof. Dr. Walter Altmann foi Professor da Faculdades EST, Pastor Presidente da IECLB de 2003 a 2010 e Moderador do Conselho Mundial de Igrejas de 2006 a 2013.
O Pastor Prof. Dr. Rudolf von Sinner foi Professor da Faculdades EST de 2003 a 2019 e hoje é Professor nos Programas de Pós-Graduação em Teologia e em Direitos Humanos e Políticas Públicas na Pontifícia Universidade Católica do Paraná em Curitiba/PR.
A íntegra da audiência está disponível em https://www12.senado.leg.br
O Projeto de Lei segue em discussão no Senado.