Proclamar Libertação – Volume 21
Prédica: Isaías 42.1-7
Leituras: Atos 10.34-38 e Mateus 3.13-17
Autor: Valdemar Schultz
Data Litúrgica: 1º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 07/01/1996
O livro do profeta Isaías é dividido em três blocos: 1-39; 40-55 e 55-66. lista divisão é consenso na pesquisa exegética. Os caps. 40-55 são atribuídos ao Segundo Isaías (sobre este profeta veja a introdução no Proclamar Libertação XIX, pp. 241s.). Conforme B. Duhm, no livro do Segundo Isaías podem ser relacionados quatro cânticos: 42.1-4; 49.1-6; 50.4-9; 52.13-53.12. Neles podem ser detectados acréscimos secundários e terciários. Embora na sua origem estes conjuntos de textos tenham sido independentes, a redação final os apresenta inter-relacionados pelo tema do Servo de Javé, colocando-os sob o mesmo pano de fundo histórico: o retorno do exílio no séc. 6.
Os cânticos do Segundo Isaías expressam esperança em meio ao sofrimento e desafiam as pessoas conformadas com o trabalho forçado no exílio. Pela sua maneira poética de lamentar e anunciar esperança, o nosso profeta foi chamado de evangelista do Antigo Testamento. Ele sabe como redirecionar o olhar cabisbaixo de um povo sofrido à Terra Santa, fazendo ecoar o grito de retorno: Sai de lá” (Is 52.11). É um olodum” mais antigo: Avisa lá que eu vou.
O nosso texto é o primeiro dos quatro cânticos conforme a classificação de Duhm. Os vv. 1-7 falam do oráculo de Javé sobre o seu Servo, podendo ser divididos em duas partes: nos vv. 1-4 Javé apresenta o seu Servo, o eleito. O seu nome não aparece no texto. O profeta é o intermediador do dito. Nos vv. 5-7 o Servo é confirmado para sua vocação. Estes versículos e os dois seguintes (8-9) possivelmente são posteriores. Na sequência do texto, têm a l unção de explicar e reforçar o cerne (1-4). A fórmula de anúncio do dito no início do v. 5 evidencia a separação entre estas duas partes.
A revelação do Servo de Javé (1-4) é inter-relacionada com o passado histórico de Israel:
1) A escolha do servo é semelhante à escolha do rei Davi. Javé põe sobre ele o seu Espírito (1 Sm 16.13).
2) Sua estratégia se diferencia da violência de seus antepassados como em Gideom (sem barulho, sem violência).
3) Sua vitória é equiparável à de Josué (colocará o direito sobre a terra).
A sua atividade está voltada para as nações. O seu direito (que no Segundo Isaías tem sentido judicial: cf. 41.1; 50.8 e 54.17) revela o domínio de Javé sobre o mundo e a sua intervenção na história (51.4). Javé, que é o criador e o mantenedor da vida (v. 5), confirma a vocação de seu Servo, a qual é universal (v. 6) e voltada para a libertação de todos os povos (v. 7).
Essa libertação não acontece nos moldes da brutalidade dos assírios e dos babilônios, mas no respeito aos povos e na busca da vida que Javé criou para todos (não esmagará a cana quebrada, nem apagará a torcida que fumega” — v. 3).
O cântico em questão tem como tema a revelação e a vocação do Servo de Javé. Quem é este Servo? Inúmeras interpretações foram dadas: ora em sentido individual, ora coletivo, ora histórico, ora escatológico.
O sentido coletivo atribui ao Servo de Javé o povo de Israel histórico (41.8). O Servo de Javé seria o povo do cativeiro. A esse povo sofrido, oprimido, desanimado e sem esperança é dada a missão de realizar a justiça de Javé diante da opressão e da escravidão do opressor. Uma variante desta interpretação propõe que não se trata de um Israel histórico, mas de um Israel idealizado ou de uma personificação da comunidade pós-exílica na dispersão.
O sentido individual é mais polémico do que o coletivo. Do ponto de vista histórico, somente uma vez é possível aplicá-lo a Ciro, rei persa, do período pós-exílico (45.1ss.). Em Ciro se concretizaria a expectativa de um Rei Messias. A ideia de tal rei remonta aos tempos de Moisés, passando pelos reis e profetas até os tempos de Jeremias e Isaías. Neste sentido, o próprio Segundo Isaías poderia ser o Servo.
Os textos não dão condições para sustentar um personagem histórico determinado. Não seria o aspecto histórico transcendido por um discurso profético escatológico? Foi levantada a hipótese de que o Servo de Javé no Segundo Isaías seria um Moisés escatológico. O retorno do exílio seria o êxodo da opressão babilônica para a terra que outrora havia sido prometida, e depois possuída, mas fora perdida, l lá de se considerar na leitura dos cânticos que o Servo de Javé pode ter um sentido histórico e escatológico. E ainda, conforme M. Buber, um sentido coletivo e individual, onde um revela o outro.
1) Sugerimos para o início da prédica uma reflexão sobre o Servo de Javé. Quem é este servo sofrido para nós hoje? A visão que a tradição cristã nos legou foi a de um servo que sofre calado, passivo diante da sua própria morte. O Novo Testamento se refere cerca de 170 vezes direta e indiretamente à figura do Servo, relacionando-o com Jesus Cristo. Essa visão passiva da vida e morte de Jesus interessa muito aos cristãos cautelosos que reagem com repúdio a qualquer atitude que exija um enfrentamento com o poder constituído. A busca de uma identidade do Servo deve levar em consideração a situação histórica do séc. 6 no pós-exílio. O Servo na verdade é fraco, sofrido, esmagado pela opressão e pelo trabalho forçado em terra estrangeira. Ele também tem saudade de casa, de sua terra santa, da casa de oração. Mas Javé é quem o apresenta. Ele faz do mais fraco o forte, sustenta-o e lhe dá uma missão: promulgará o direito (vv. l, 3 e 4).
2) A postura do Servo é de humildade, de derrotado (v. 2). Mas sua ação é a ação de Deus no mundo. A sua força vem de Deus, que criou e mantém o mundo. O momento histórico do período pós-exílico é de certa trégua. Mesmo assim, existe muito desânimo. O povo se sente como cana quebrada (v. 3). A missão do Servo nessa situação é a de animar e organizar o retorno à terra. Fazer isso é cumprir o direito de Deus no mundo.
Momentos históricos diferentes exigem ações diferentes. Numa dominação violenta como a dos babilônios e assírios, ou numa ditadura militar, ou numa segregação racista (apartheid), o enfrentamento direto com o opressor é muitas vezes inevitável. Numa dominação mais aberta como a do período persa, ou numa democracia neoliberal, há possibilidade de negociações, diálogo e até mesmo de se fazer alianças. Uma postura mais ponderada não deve significar e nem levar ao comodismo ou à passividade diante das situações de pobreza e miséria que o sistema social e político impõe. A postura do Segundo Isaías diante do seu momento histórico tem um colorido diferente da cor do sangue.
3) Deus é o Senhor da história que criou este mundo e o mantém. Ele é quem sustenta os fracos e defende os oprimidos. Faz enxergar os que estão cegos e liberta os encarcerados (v. 7). Tem o mundo sob o seu domínio. Em Jesus Cristo Deus se tornou fraco para que o seu direito fosse proclamado sobre as nações. Jesus Cristo entendeu o seu sofrimento e a sua morte como entendeu a sua vida: não para ser vivida para si mesmo, e, sim, em favor de muitos. Ninguém me tira a vida: eu a dou por mim mesmo. (Jo 10.18.) Como a missão do Servo nos move hoje em dia em nossa realidade específica?
GRIMM, Werner & DITTERT, Kurt. Deuterojesaja; Deutung — Wirkung — Gegenwart. Stuttgart, Calwer, 1990;
KRAUS, Hans-Joachim. Das Evangelium der unbekannten Propheten; Jesaja 40-66. Neukirchen-Vluyn, Neukirchener, 1990;
MESTERS, Carlos. A Missão do Povo que Sofre; Tu És Meu Servo. Petrópolis, Vozes, 1985;
WIENER, Claude. O Dêutero-Isaías; o Profeta do Novo Êxodo. 2. ed. São Paulo, Paulinas, 1984.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).