Proclamar Libertação – Volume 10
Prédica: João 14.23-27
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação: 26/05/1985
Introdução
Inicialmente podemos constatar que este texto do Evangelho Segundo João não leva a uma prédica festiva por ocasião de uma determinada data. O nosso Evangelho não fala tanto de um acontecimento isolado e único, mas do Pentecostes atual e permanente, do Pentecostes que sucede à comunidade de todos os tempos (Bonhoeffer). É feita a promessa de que Jesus Cristo não abandona os seus, e é apontado o presente de despedida que ele lhes deixa: A sua paz.
1. Contexto
O nosso trecho faz parte de um bloco maior que abrange os capítulos 14-17. Contêm eles os ensinamentos de Jesus na hora de sua despedida. Na perspectiva da cruz reconhecemos o amor infinito de Deus revelado em Jesus de Nazaré. Neste bloco encontram-se três unidades marcantes: o primeiro discurso de despedida (14.1-13); o segundo discurso de despedida (15.1-16.33) e a oração sacerdotal (17.1-26).
Por trás dessas unidades há diferentes tradições, de épocas diversas, que foram agrupadas e trabalhadas para formarem o conjunto em que atualmente se encontram. Não queremos, porém, entrar nos detalhes da crítica literária.
2. Exegese
Vv. 23 e 24: Pentecostes é experimentado por aqueles que amam Jesus Cristo e guardam a sua palavra. Onde ele é amado, ali toda a sua palavra (observe-se o singular!) é observada. Mas o que significa concretamente amá-lo? Não se trata de um sentimento místico. É antes um amor encarnado que procura o irmão. Do irmão, no entanto, o passo seguinte leva outra vez a Jesus. Este não somente dá um novo mandamento no sentido de ser aquele que desencadeia o amor ao próximo. Ele é também o alvo deste amor. A abertura que ele possibilita é exatamente uma abertura em direção a si. Temos aí um círculo: Eu vos amei, amai-vos uns aos outros (13.34), assim estareis amando a mim (vv. 15 e 21).
Quem arrisca viver nestes termos nada precisa temer. Não há poder que pudesse destruir o que se dá onde Jesus é amado!
Onde sua palavra (que é também a palavra do Pai) é observada acontece algo definitivo. Por isso é dito que todo o amor de Deus se cumprirá naquele que ama Jesus. A este virão o Pai e o Filho e farão nele morada. Eles vêm a quem se distancia de si próprio em amor. Não se trata aí de uma obra meritória por parte do homem. O pressuposto é a fé. Quem não ama Jesus, mas a si mesmo, não poderá ser templo de Deus.
Vv. 25 e 26: Eis aí a promessa de Jesus de permanecer com os seus discípulos, pois em seu nome o Pai enviará o Consolador, o Espírito Santo. Qual será a função do PARAKLETOS? Ele vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito. Ele interpreta e aplica o que sucedeu em Jesus. Não se trata, portanto, meramente de uma recapitulação, mas antes, de uma atualização. O Espírito Santo é o Deus que faz lembrar, que conduz à história de Jesus, testificando da entrega ali realizada, e nos leva a nos entregarmos (Joerg Bauer). Assim a obra de Jesus é continuada por Deus mesmo numa nova realidade pessoal.
V.27: À promissão da morada que o Pai e o Filho farão no crente, e do envio do Consolador, junta-se a dádiva da paz. Claramente essa paz é distinguida da paz que o mundo dá. Ela não é algo exterior! É a paz com Deus e com os homens que perdura, que tem consistência mesmo lá onde somos ameaçados de destruição. É uma paz confiada como tarefa. A paz de Cristo, então, não é ‘passiva’…, nem ‘descanso eterno’. É uma paz ativa, uma paz interior, que se consegue na prática do amor e que, alcançada, sempre de novo se traduz em amor eficaz e engajado (J. Konings). É paz como graça e como encargo.
3. Meditação
Sugiro destacar na prédica o tema: paz como graça e como encargo. O v.27, evidentemente, não deverá ser isolado, mas sim interpretado no espírito de toda nossa perícope. Na meditação tentarei aprofundar, num primeiro momento, a questão da paz. Num segundo passo procurarei mostrar ser imprescindível estar em íntima ligação com aquele que diz: Se alguém me ama, guardará as minhas palavras. Chegarei, assim, à primeira parte do nosso texto.
1. Pelo mundo afora há conflitos armados e não armados. Quanto à situação no continente latino-americano, ela é caracterizada por tensões de todo tipo. Menciono somente alguns poucos exemplos: Sobre pequenos agricultores que tiram da terra os seus parcos meios de subsistência é exercida forte pressão por grandes empresas. De modo geral, há uma iníqua repartição das rendas. Enquanto alguns poucos podem se dar ao luxo de padrões requintados de consumo, a grande maioria luta pela sobrevivência. Aumenta perigosamente o confronto entre as classes sociais. A todo momento são violados os mais elementares direitos humanos. Também o nosso pequeno mundo mais imediato está cheio de tensões. Sim, em nós mesmos erguem-se conflitos.
Aí lemos, então, uma palavra como a do nosso trecho bíblico: Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou. O que significa isso concretamente, perguntamos. Onde há paz? Onde?
Com Jesus Cristo a paz de Deus entrou na história dos homens. O crucificado não fracassou com as suas intenções de paz. A paz não foi derrotada. Daquele que a viveu até o fim, nós confessamos: Ele vive! Ele foi ressuscitado. A paz que com ele entrou no mundo nunca mais poderá ser eliminada. Ao contrário, ela já nos envolve. A paz de Deus já se manifesta, mesmo que muitas vezes devido à nossa cegueira não o percebamos. Às vezes até as igrejas, ao invés de serem instrumentos da paz, aumentarem o ódio no mundo.
Seja como for, uma coisa temos que admitir: Onde a palavra de Jesus Cristo foi ouvida, ali, apesar de tudo, houve um forte impulso em direção à paz. Em Jesus Cristo ela é uma realidade. A paz de Deus já é paz na terra.
Queremos explicar esta afirmação com três exemplos:
a) Culpados não perdoados! Por que tantas divisões, por que tanta separação, por que tantos conflitos no mundo? Por que tanta guerra? Guerra desencadeia-se por causa de suposta ou verdadeira culpa e, ao mesmo tempo, gera nova culpa. Um, porém, quebrou este círculo vicioso! Os escribas e fariseus trouxeram à presença de Jesus uma mulher surpreendida em adultério. Conforme a lei ela teria que ser apedrejada. Como insistissem na questão, Jesus levantou-se e lhes disse: Aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar a pedra. Então, todos se retiraram um por um. Somente ficou a mulher. Jesus perguntou-lhe: Ninguém te condenou? E o desfecho: Nem eu tão pouco te condeno; vai e não peques mais. As pedras não foram arremessadas. Ninguém conseguiu resistir à pergunta: Quem dentre vós está sem pecado?. Diante de Deus cada qual de nós se encontra na mesma situação de pecador. E se alguém já está com uma pedra na mão para arremessá-la contra o seu semelhante, ele é perguntado: quem dentre vós está sem pecado? A pedra ficará deitada. Vejam, aqui nos movimentamos em terreno firme da paz.
b) O homem torna-se livre da ansiosa solicitude pela vida. Exagerada preocupação no sentido de querer garantir a sua vida, leva à exploração do próximo. É o medo pela sobrevivência. Medo leva a ver no outro um rival, conduz à guerra. E Jesus? Ele diz: Não andeis ansiosos pela vossa vida. Observai as aves do céu! Não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiro; contudo vosso Pai celeste as sustenta. Não valeis vós muito mais que as aves? E quantas vezes ouvimos nos evangelhos o célebre: Não temais! Certa vez ergueu-se uma forte tempestade sobre o mar. Os discípulos ficaram apavorados. Jesus lhes pergunta: Por que sois tão tímidos? De uma maneira poimênica o homem é libertado do medo que o escraviza. Onde desaparece o medo pela sobrevivência, há abertura para o próximo, há uma real chance para a paz.
c) Barreiras de separação são derrubadas. Jesus entrou numa aldeia de samaritanos com seus discípulos. Samaritanos e judeus eram inimigos mortais. Nega-se a Jesus e seus discípulos a pousada, ao que Tiago e João perguntam: Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para os consumir? A resposta é: Vós não sabeis de que espírito sois?
Resumindo: Onde culpados recebem perdão, onde ansiosos se enchem de confiança, onde adversários se reconciliam, ali acontece paz na terra.
2. Um ousou viver diferente. Por isso é imprescindível estar em ligação com ele que diz: Se alguém me ama, guardará a minha palavra. Importa querer pertencer-lhe, estar em comunhão com ele, desejar sua presença. Quem ama assim, guardará a palavra daquele que ama. Não mais quer viver sem observá-la. Agirá conforme a mesma. Tal viver em amor terá total cumprimento. O Pai e o Filho virão a quem ama e farão nele morada. Isto significa que todos os outros senhores que estavam tomando conta de nós terão que debandar. Quanto mais deixarmos Jesus Cristo ser o nosso Senhor, tanto mais habitará em nós.
Com a promissão de tomar morada nos discípulos, Jesus lhes dá a certeza de que quer permanecer com eles, após a sua volta ao Pai. Esta sua presença se dá através do Espírito Santo que o Pai envia, em seu nome. O Espírito Santo vem aos discípulos e os orienta como Consolador. A comunidade hoje, da mesma forma, recebe orientação de novo no seu caminho. Nas diferentes situações ela tem como a oriente: o Espírito Santo que é Deus vivo. Tudo o que o Espírito Santo ensina, está ligado à vida e obra de Jesus Por isso, ao ensinar se alia o lembrar.
A paz que em Jesus já se tornou realidade no mundo, como dissemos acima, nos é ensinada e lembrada pelo Espírito Santo.
Entre os homens o desejo pela paz é tão antigo quanto a humanidade. Mas ele somente se acende, em vista de cidades devastadas * homens sacrificados. Em meio a uma guerra se deseja paz. E uma vez conseguida, tenta-se garanti-la á base de armas. Isso está tudo dentro de um sistema de valores e de hierarquias de poderes no qual vivem os homens e no qual perecem. Todo este sistema Jesus rompe de dentro para fora. A paz e o amor que proclamou e viveu renovam os pressupostos da vida. Todo nosso ser e agir poderão estar sob o sinal dessa paz, desse amor. No contato com os cristãos todos os homens deveriam perceber algo; desse viver a partir da paz que é graça e encargo ao mesmo tempo.
Karl Marx certa vez exclamou: Os filósofos meramente interpretam o mundo… o que importa é transformá-lo. Oxalá não se possa dizer dos cristãos que eles meramente interpretaram o mundo om vez de fazer algo, em vez de transformá-lo. Somos discípulos do Príncipe da Paz! Vivendo como tais, estaremos vivendo no espírito de Cristo.
4. Sugestões para a prédica
1. Penso que o pregador poderia apontar para a estranheza que causa a proclamação da paz em meio a um mundo dividido. Talvez nos moldes como o esbocei no primeiro item da meditação. É aconselhável trazer exemplos concretos que os ouvintes conheçam, mas sem se deter na difamação do mundo mau.
Não obstante a experiência diária de divisões, separação e ódio, a paz duradoura, a paz de Deus, já é realidade!
2. A paz que o mundo oferece não tem consistência, pois ela está integrada no sistema de valores e de hierarquias de poder estabelecido, sistema baseado na corrida desesperada do homem por afirmação de si próprio. Em contrapartida, o Espírito Santo nos mostra um viver a partir do amor, da entrega. Nesse contexto, paz é possível, paz como graça e como encargo.
3. O Espírito Santo nos certifica que a paz que entrou no mundo com Cristo Jesus, não mais poderá ser eliminada. Nada poderá derrotar a paz que provém do espírito de amor, da entrega de si mesmo! (Cf Rm 8).
5. Subsídios Litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, sabemos que tantas vezes não vivemos como espirituais. Não nos colocamos a tua disposição; não servimos com os dons que tu nos deste. Preferimos usar nossas forças, nosso tempo e nosso dinheiro em favor de nós mesmos. Emitimos juízos fáceis sobre os outros. Não nos empenhamos na construção e uma vida em comunhão. Esquecemos de sermos ativos no amor. Perdoa-nos, Senhor! Tu prometeste o teu Espírito; Pedimos-Te: Cria em mim, ó Deus um coração puro, e renova dentro de mim um espírito inabalável. Não me repulses da tua presença, nem me retires o teu Santo Espírito!! Tem piedade de nós. Senhor!
2. Oração de coleta: Ó Deus, dá-nos o teu Espírito Santo para que encontremos consolo na tua ressurreição e cresçamos diariamente na fé, no confiar e na esperança e, assim, alcancemos a salvação eterna. Pedimos-te através de nosso Senhor Jesus Cristo, teu Filho que contigo e o Espírito Santo vive e reina de eternidade a eternidade (Lutero). Amém.
3. Sugiro ler a explicação de Lutero para o 3° Artigo conforme o Catecismo Menor em lugar do Credo Apostólico.
4. Assuntos para a oração final: Agradecimento pelo Espírito vivificador que nos leva à fé, ao amor e à esperança; é ele quem nos anima para os pequenos passos de uma vida abnegada; é ele quem nos presenteia o viver em comunhão; pedido pelo nosso povo sofrido, que somente ouve de constantes aumentos do custo de vida e da redução das possibilidades de trabalho; pedido pelo povo que não tem paz, que já não sabe como sobreviver, que é vítima dos que confiam tão somente no seu próprio espírito (de ganância); que Deus dê lideranças que cumpram a tarefa que ele lhes confiou: promover e preservar a vida de todos; queira Deus transformar a todos nós cada vez mais em mensageiros de sua paz neste mundo conturbado. Que ele nos ilumine com seu Espírito para que depositemos nossa inteira confiança nele, somente nele!
6. Bibliografia
BAUR, J. Meditação sobre João 14.23-27. In: Calwer Predigthilfen. v.2. Stuttgart, 1972;
BONHOEFFER, D. Meditação sobre João 14.23-27. In: Gesammelte Schriften. v.4. München, 1961;
BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes. In: Kritisch exegetischer Kommentar über das Neue Testament. 10. ed. Göttingen, 1964;
EVANGELIZAÇÃO na América Latina. In: Centro Ecumênico de Informação. Rio de Janeiro, suplemento 21, 1978;
KONINGS, J. Encontro com o quarto evangelho. Petrópolis, 1975;
SCHULTZ, S. Das Evangelium nach Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch. v.4. Göttingen, 1975.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).