Prédica: Marcos 3.20-35
Leituras: Gênesis 3.9-15 e II Coríntios 4.13-18
Autor: Arteno Ilson Spellmeier
Data Litúrgica: 3º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 29/06/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema
1. Para início de conversa
Há alguns anos, um pastor da linha pentecostal iniciou um traba¬lho numa colônia muito antiga e tradicional, em que as famílias ou eram luteranas ou eram batistas já tanto tempo que ninguém mais sabia desde quando. Ele seguiu uma estratégia diversificada: com os membros da comunidade luterana, ele argumentava que o cristão verdadeiro não bebe, não fuma, tinha que ser mais radical e, principalmente, que era necessário receber o batismo do Espírito Santo, considerando-se que o batismo de crianças, com o qual até então eles estavam acostumados, não era o batismo verdadeiro. Aos membros da comunidade batista, ele dizia que o cristão verdadeiro teria que viver em oração, ir a extremos nas questões éticas, mas também nas questões mais formais, como o jeito de se vestir, com quem se relacionar… Algumas pessoas, tanto luteranas como batistas, passaram para a comunidade dele. Houve rachas profundos em famílias, entre pais e filhos, esposa e esposo, entre comunidade de origem e comunidade nova. O texto bíblico preferencial tanto do pastor pentecostal como de seus novos membros era o texto de Marcos 3.20-35. Será que este texto agüenta tudo isso? Será que ele permite legitimar qualquer tipo de ruptura dos laços familiares e confessionais? Que relação ele tem com a tradição, com a identidade étnica e religiosa?
2. Um olhar para trás
O texto descreve duas situações de conflito com que Jesus é confrontado:
a) em dois momentos (v. 20-21 e v. 31-35), é narrado um conflito de Jesus com os familiares que querem tirá-lo do meio do povo e dos seguidores por suspeitarem que ele não esteja bem da cabeça;
b) no bloco maior (v. 22-30), é narrado um conflito com representantes da tradição religiosa, professores da lei, que o acusam de estar dominado por Belzebu e estar expulsando demônios no nome deste. São dois grupos e uma só acusação: para fazer o que ele esta fazendo, só pode não estar bem da cabeça. O que fez com que tanto os familiares como os professores da Lei levantassem a mesma suspeita, a de que Jesus estivesse fora de si, possuído pelo demônio, louco?
Nos capítulos e versículos anteriores ao texto em pauta, é narrado
a) que Jesus começa a ensinar com autoridade (1.21-22);
b) que são trazidas a Jesus pessoas enfermas e endemoninhadas e que ele as cura (1.23-34);
c) que pessoas à margem da sociedade, publicanos e pecadores, procuram a companhia de Jesus e que ele tem comunhão com elas (2.13-17);
d) que estão seguindo Jesus pessoas à procura de cura e pessoas curadas, pessoas à procura de sentido para a vida e pessoas que o encontraram na sua mensagem, pessoas à procura de perdão e aceitação e aquelas que se sentem perdoadas e aceitas por ele. Quando começam a perceber que em Jesus se cristalizam muitas de suas esperanças em relação ao Messias, estas pessoas não apenas o seguem: perseguem-no, tão grande é sua dor, tão imensa a sua esperança (E. Streck, p. 193).
Parece coisa de doido mesmo: num mundo em que as relações estão definidas pela divisão em castas, classes e grupos de privilegiados e dos que caem fora do sistema, e ancoradas tanto na lei como na tradição familiar, religiosa, social e econômica, alguém põe essa ordem em dúvida com suas atitudes e palavras. E isto ocorreu numa época em que os condicionamentos e a força da tradição e da lei eram muito superiores aos dos dias de hoje.
Na relação com a família consangüínea:
a) no tempo de Jesus, a família sempre foi entendida como a grande família, como clã, como unidade econômica, social e política, não como a família pequena e fragmentada de hoje;
b) alguns comentaristas supõem que José, o pai de Jesus, já esteja morto, pois não aparece em nenhuma das listas dos familiares, sendo Jesus, como filho mais velho, portanto, o arrimo da família, o substituto do pai tanto no nível econômico, como no nível legal e social;
c) os familiares e a sociedade esperavam de Jesus que ele assumisse este papel previsto para ele na tradição e legislação; ele nega-se a viver este papel, incluindo em sua família todas as pessoas que estão ao seu redor, inclusive aquelas que, segundo a tradição e a lei, não podiam de jeito nenhum fazer parte de uma família tradicional;
d) Jesus não nega a sua família de origem, mas redefine o conceito de família, ampliando-o: é o grupo formado pelas pessoas que fazem a vontade de Deus, que têm como elo de união a esperança de um novo reino, em que as pessoas pecadoras são perdoadas, as doentes, curadas, as marginalizadas, aceitas, as endemoninhadas, libertas e as que estão longe de Deus vêm para os seus braços, e não apenas um grupo de pessoas que têm como laço principal a consangüinidade e as responsabilidades e os direitos conseguintes, previstos na lei e na tradição;
e) nessa família, assim ampliada, há lugar para os familiares consangüíneos (At 1.14; Jo 19.26s; l Co 15.7), não devido à consangüinidade, mas por partilharem a esperança do novo reino e por colocarem a vontade de Deus acima de qualquer coisa;
f) não são os que acompanham Jesus e que se encontram reunidos ao seu redor que, num primeiro momento, passam a chamar-se mutuamente de irmãos, irmãs, mães e pais, mas é Jesus que determina quem é da família: Aí olhou para as pessoas sentadas em volta dele e disse: Vejam, aqui estão a minha mãe c os meus irmãos. Pois quem faz a vontade de Deus é meu irmão, irmã e mãe (v. 34 e 35). Pertencer a esta família, portanto, não é direito adquirido, mas vocação, convocação. A família assim ampliada e vocacionada passa a ser comunidade, igreja, responsável pelo que é da família e do reino de Deus.
Na relação com a família religiosa:
a) em quatro passagens anteriores (Mc 2.16-17: sobre o relacionamento com os pecadores; Mc 2.18-21: sobre o jejum e Mc 2.23-28 e 3.1-6: sobre o sábado), Jesus bateu de frente com a tradição e a lei e os seus representantes: a ruptura é profunda e não tem a sua origem em questões secundárias, mas na compreensão que cada qual tem de Deus e de sua criação, na compreensão que cada qual tem do relacionamento do Filho de Deus com as criaturas sofridas, marginalizadas, presas ao pecado e do papel da lei e da tradição;
b) também em Mc 3.22-30, ele bate de frente com a ordem vigente e seus representantes, os professores da Lei, que procuram difamá-lo, acusando-o de estar pactuando com o demônio e de estar agindo em nome e com o poder de Belzebu;
c) Jesus responde com duas parábolas, a do país ou da família ou reino divididos por conflitos internos e a da casa do homem valente que precisa ser dominado, dizendo que a acusação deles é sem sentido: – eles subestimam a inteligência de Satanás, quando pressupõem que em seu nome é possível dividir a sua família, expulsando demônios; – eles subestimam o poder de Satanás, quando pressupõem que é possível dominá-lo sem mais nem menos, usando a sua imagem como espantalho para assustar os seguidores de Jesus; – eles subestimam a Jesus, quando não o aceitam como aquele que veio trazer o reino de Deus que necessariamente entrará em conflito com o reino das trevas;
d) Jesus reflete, nos versículos 28 e 29, o quanto é equivocada a posição e a atitude dos professores da Lei com suas acusações: – todos os pecados e blasfêmias contra Deus serão perdoados, a partir do reino, pois o perdão e o novo início são sua essência; – só não serão perdoados os insultos contra o Espírito Santo, isto é, não será perdoado o pecado de quem não ousa crer que Jesus Cristo é o Messias, que, em Jesus Cristo, Deus cria algo totalmente novo e renova o seu relacionamento com a sua criação, o pecado de confundir o Espírito de Deus com o espírito de Belzebu, o pecado de não crer que, em Jesus, Deus quer e pode perdoar os insultos, as discrepâncias, as contradições, as limitações, os pecados, os condiciona mentos, as fraquezas dos seres humanos; – todos os pecados, realmente todos, podem ser perdoados desde que se aceite que Deus pode e quer perdoar em Jesus Cristo e desde que se queira o perdão: não ha perdão automático, mecânico; ele é doação gratuita de Deus, mas não acontece contra a vontade individual de cada um e cada uma.
3. Voltando à história do início
Para os membros tradicionais, luteranos e batistas, num primeiro momento, nem se tratava do que é teológica e biblicamente correio, mas como alguém poderia questionar a tradição que os seus antepassados lhes haviam deixado? Como alguém poderia ter a petulância depor em dúvida o seu jeito de ser comunidade, algo que sempre foi considerado certo? O problema, para eles, não era teológico, mas pastoral.
O processo então iniciado em conjunto foi, no começo, um tanto doloroso, pois abrir mão da segurança existente no reconhecimento de que não pode estar errado hoje o que sempre foi certo, não c fácil. Os membros tiveram a impressão que estavam sendo questionados em sua identidade e história, que estavam sendo postos em dúvida a tradição e tudo o que eles e seus antepassados sempre consideraram certo.
Num primeiro momento, procuraremos refletir pastoralmente sobre a sua história e as suas tradições:
a) O que os nossos pais nos transmitiram e o que nós mesmos criamos e adaptamos nas tradições que herdamos?
b) Por que é assim que, se deixarmos de adequar a tradição à nossa realidade, ela não serve para nada, e, se não considerarmos a tradição e história dos que viveram antes de nós, estaremos à mercê de tradições alheias, culturas estranhas e uma história alienada?
c) Perderemos nossa identidade, se recriarmos a nossa cultura e adaptarmos a nossa tradição à realidade de nosso tempo e nos abrirmos para outras tradições?
Só num segundo momento, começaremos a refletir bíblica e teologicamente sobre o que estava sendo afirmado pelo pastor e pelos membros da nova comunidade:
a) Refletimos sobre o batismo, sobre uma vida a serviço da justiça e da santificação e procuramos nos olhar com olhos críticos, revelando a nossa frequente falta de amor, as muitas injustiças, diante das quais nos calamos, a frequente falta de união, o mau exemplo dado às nossas crianças e aos nossos jovens pela falta de clareza na nossa relação com a bebida, com o sexo.
b) Ajudou-nos nesta reflexão crítica o texto de Marcos 3, usado pelo pastor e pelos membros da nova comunidade para fundamentar a ruptura na família e na comunidade. Nesta fase da reflexão, a pergunta não era mais: como pode alguém ter a petulância de pôr em dúvida o nosso jeito de ser comunidade?, e sim: será que, presa à tradição, nossa comunidade não se parece mais com a comunidade judaica do que com a comunidade criada por Jesus? Foi um processo libertador, pois tivemos que aprender a confrontar os valores da tradição comunitária com a tradição bíblica e a nossa prática com o nosso discurso. Em que a nossa tradição está atrapalhando e impedindo que nossa comunidade fique mais parecida com a comunidade criada por Jesus?
c) Foi necessário resgatar os motivos que, em Marcos 3, levaram à dupla ruptura, com os laços familiares e com os laços da tradição religiosa: – os laços familiares foram se estreitando tanto que neles não havia mais espaço para todas as pessoas e grupos que se juntaram ao redor de Jesus. Um mundinho tão estreito, que não oferece espaço para os mais necessitados dos filhos e das filhas de Deus, não corresponde mais ao projeto inicial de Deus. A ruptura é necessária, não para destruir a família, mas para ampliá-la e colocá-la de novo a serviço daquele que lhe deu origem. A ruptura, na verdade, não foi efetuada por Jesus, mas pela tradição familiar, quando rompeu com o projeto original de Deus. Há, em nossas famílias, lugar para aquelas pessoas (pecadoras, doentes, desviadas, confusas, desesperadas, dependentes…) que Jesus tanto amou e ainda ama? – com o passar do tempo, os laços da tradição religiosa também foram se rompendo, a saber, quando começaram a surgir os donos da verdade, os controladores e gerenciadores da salvação; quando surgiram os que reduziram a graça infinita de Deus a um produto manipulável ao qual alguns têm mais direito que outros; quando surgiram os que, de tão presos aos seus esquemas de salvação, não mais conseguiam ver a dor das criaturas de Deus e vislumbrar a terrível luta entre o reino de Deus e o reino das trevas, nem discernir os espíritos, confundindo o Espírito de Deus que está em Jesus com o espírito do demônio, cometendo o único pecado que não pode ser perdoado: o de não crer que Jesus Cristo tem o poder de perdoar, curar, reconciliar… Que tradições em nossa comunidade podem ajudar-nos a criar uma comunidade capaz de testemunhar este perdão, de promover a cura e de viver a reconciliação?
A mensagem da nova comunidade pentecostal começou a ser refletida mais crítica e conscientemente e deixou de ser uma ameaça à própria identidade e à tradição herdada dos pais.
No caso de trabalharmos com famílias e comunidades que se caracterizam pela aparente falta de tradições, pela aparente fragmentação ou pela aparente falta de identidade étnica, cultural e religiosa, teremos que iniciar também pela procura das raízes comuns, suas contradições e limitações, pois não há grupo social que não tenha historia (histórias), identidade étnica, cultural, religiosa e familiar. As raízes não têm poder salvífico, mas sem elas Jesus não consegue encarnar-se em nossa vida e história. Uma das coisas maravilhosas do evangelho de Jesus Cristo é que até hoje ele constantemente se encarna na realidade de nossas vidas e a perpassa.
4. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados: Senhor Jesus, vivemos em famílias e comunidades cada vez mais fechadas e negamos o teu Evangelho; tu as queres cada vez mais abertas para incluir todas aquelas pessoas que tanto amaste e ainda amas: pecadoras, doentes, desviadas, confusas, desesperadas, dependentes… Apossamo-nos do teu amor, instrumentalizamos nossas tradições e não usamos a nossa identidade étnica, cultural e religiosa como uma dádiva tua, mas como instrumento de exclusão e opressão. Tem piedade de nós, Senhor! Amém.
Oração de coleta: Agradecemos, Senhor, porque a tua palavra encarna-se em nossa realidade e perpassa a nossa vida em todas as suas dimensões. Não permitas que nos esquivemos dela. Transforma-nos! Abre as nossas famílias e comunidades para que fiquem cada vez mais parecidas com a comunidade de Jesus, em cujo nome oramos c pedimos. Amém.
Intercessão: Bondoso Deus, agradecemos-te por Jesus Cristo ter chamado de irmãs e irmãos as pessoas doentes, afastadas, pecadoras, desviadas, confusas, desesperadas e sem paz e por podermos incluir a nós mesmos no rol dessas pessoas. Auxilia-nos a viver como irmãos e irmãs com elas, a ser, em nossas famílias e comunidades, cada vez mais conformes com a comunidade de Jesus.
Abençoa os nossos lares, as pessoas idosas, as crianças, os jovens, os casais, porque não está fácil sobreviver e manter a família unida. Queremos reconciliar-nos, quando diferenças e brigas nos separam na família. Queremos incluir as pessoas amadas por ti, independentemente de cor, religião, sexo e idade, orientando-nos somente pela necessidade que elas têm.
Abençoa as nossas comunidades, para que elas sejam um local em que encontramos a nossa identidade; que não excluam as pessoas que são diferentes, mas as aceitem com sua história e tradição e com o seu jeito de ser. Dá-nos uma identidade aberta.
Abençoa a nossa sociedade, os grupos que a compõem, os líderes mi economia e na política, para que ela seja um local em que haja trabalho para todas as pessoas e reinem a paz e a justiça. A sociedade é a nossa família e comunidade ampliadas; por isso, somos co-responsáveis por ela.
Cremos que tu tens o poder de renovar o que se desgastou, de reconciliar o que está rompido, de achar o que está perdido, de perdoar o que está errado, de criar justiça onde há injustiça, de dar nova vida ao que está morto. Por isso te pedimos: atende a nossa oração! Amém.
Bênção: Tu, que estás acima, abençoa-nos!
Tu, que estás abaixo de nós, carrega-nos!
Tu, que estás ao nosso lado, fortifica-nos!
Tu, que estás à nossa frente, guia-nos!
Bibliografia
FERREIRA, Edson Saes. Meditação sobre Mc 3.31-35. In: KIRST, Nelson (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1980. v. VI, p. 252-257.
GRUNDMANN, Walter Das Evangelium nach Markus. 9. ed. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1984.
STRECK, Edson E. Meditação sobre Mc 3.20-35. In: KILPP, Nelson, WESTHELLE, Vitor (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1990. v. XVI, p. 192-199.
Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia