Prédica: I Coríntios 12.12-21,26-27
Leituras: Isaías 61,1-6 e Lucas 4.14-21
Autor: Isabel Toillier
Data Litúrgica: 3º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 25/01/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXIX
Tema:
1. Introdução
Estamos em “tempo de Epifania”. A Epifania nos convida a celebrar a revelação de Deus em Jesus Cristo. Jesus Cristo se faz pessoa, tem corpo humano, experimenta dor, medo, decepção, alegria, esperança. Deus se faz corpo em Jesus Cristo para dar-se a conhecer, para entrar em comunicação. O corpo não é fronteira e sim possibilidade de relação.
Em toda a sua vivência, Jesus valorizou o ser humano como pessoa integral. As curas que Jesus realiza deixam claro o respeito e a dignidade que ele busca para o corpo humano. Jesus quer vida digna e abundante para todas as pessoas, e isto passa pela valorização do corpo humano.
Vivemos num tempo em que a valorização do corpo está em alta. Fala-se da importância da saúde, de caminhadas, exercícios físicos. Academias ganham cada vez mais adeptos e adeptas. Há uma extrema valorização da aparência. O corpo humano precisa ser belo. A pessoa é valorizada pelo que aparenta. Dentro dessa realidade temos o desafio de ser Igreja de Jesus Cristo.
2. Contexto
A comunidade cristã de Corinto tem problemas concretos. Os conceitos trabalhados por Paulo na primeira carta aos coríntios refletem uma situação de rivalidade interna, que gera conflitos na comunidade. A comunidade estava dividida, grupos brigavam entre si. Por isso, um dos primeiros objetivos de Paulo é restabelecer a unidade em torno de um único líder: Jesus Cristo – este não divide e sim congrega.
A metáfora do corpo, usada no capítulo 12, pode revelar a unidade e a complementaridade que precisam acontecer na comunidade, possibilitando o exercício dos diferentes dons. Acredita-se que os cristãos e cristãs de Corinto não eram muitos. Uma comunidade “jovem e pequena”.
Já a cidade é uma metrópole, uma das principais do Império Romano. Não se sabe com exatidão o número de habitantes, mas alguns autores chegam a falar em 500 mil. Corinto possuía dois portos, um a leste e outro a oeste, que faziam a ligação entre o centro do império e a Ásia. A cidade movimentava um enorme comércio devido aos portos e também à produção de pequenos artesãos e artesãs locais. A maioria da população era formada por pessoas escravas ou pessoas pobres, que sobreviviam do artesanato, enquanto a elite era formada por uma minoria.
Muitas pessoas da comunidade cristã de Corinto estavam ligadas à atividade comercial e tiravam dela seu sustento. Na sua maioria, essas eram humildes e experimentavam certa marginalização e exploração por parte de alguns poucos da classe mais abastada.
As relações eram hierárquicas – autoridade e subordinação –, e qualquer alteração era considerada subversão. A religião da esposa e dos escravos era determinada pelo homem. O Estado não permitia que subordinados tomassem decisões independentes. O Estado era uma extensão da casa, onde a hierarquia se dava em três relações principais: senhores – escravos; esposos – esposas; pais – filhos.
A fé cristã traz uma nova valorização das pessoas e suas relações. Essa mensagem libertadora provoca eco também na ordem socioeconômica. Logo as pessoas que mantêm o poder na cidade percebem um poder subversivo no cristianismo.
A comunidade cristã sofre tensões diante do esforço de fazer todas as pessoas parte do corpo de Cristo. É na perspectiva de inclusão que queremos ler o texto de 1 Co 12.
3. Texto – todos os membros do corpo
O corpo é um só e tem muitas partes (v. 12).
A metáfora do corpo é usada para falar da comunidade e a ela. A comunidade é uma só e tem muitas pessoas; apesar de serem muitas pessoas e mesmo grupos diferentes, formam uma só comunidade – corpo de Cristo.
Somos batizados em um só Espírito (v. 13).
O Espírito Santo que traz vida e revigora é um só. Da mesma forma, o Batismo é um só. Quem batiza é o próprio Deus, e assim temos um só Batismo para toda a vida. A partir do Batismo somos parte do corpo de Jesus Cristo – a comunidade. Este corpo é formado de fato por muitas e muitos (v. 14). Muitos e diferentes, porém iguais diante de Deus. A diferença não nos exclui da comunidade, mas precisa complementar e enriquecer.
Se o pé diz: não sou parte… (v. 15-16)
Temos diferenças sociais, raciais, culturais e de gênero, mas isto não nos exclui da comunidade. Ao contrário, bebemos do mesmo Espírito, somos um só corpo. Como pessoas temos nossas diferenças. Como criaturas de Deus somos iguais, “criados à sua imagem e semelhança”. Diferentes em funções desempenhadas, mas iguais na fé partilhada. Se todos fôssemos iguais, onde estaria a diferença? De onde viriam o questionamento, a reflexão e o crescimento? Se fôssemos exatamente iguais, onde poderíamos aprender uns com os outros? (v. 17)
Eu não preciso de você (v. 21).
Não podemos dizer que não precisamos uns dos outros como pessoas. Nem das mais pobres nem das mais ricas. Vivemos e convivemos em relação com o outro, com a outra. O ser humano individual não é um ser separado, mas alguém que busca comunicação. A realização e o reconhecimento de si mesmo se dão na comunidade de relações.
Se um membro sofre, todos sofrem. Se uma pessoa se alegra, todas se alegram (v. 26).
Este é o desafio de ser comunidade. Se uma pessoa sofre, toda a comunidade precisa se solidarizar com ela, compartilhar seu sofrimento. Da mesma forma, a alegria de uma pessoa precisa se transformar em alegria de todo o “corpo”. A alegria precisa ser partilhada e compartilhada na comunidade. A alegria de uma pessoa precisa ser esperança que se traduz em fé e transformação na vida do grupo todo.
4. Corpo – possibilidade ou ameaça?
Os seres humanos têm corpos. Corpos passam por processos como alimentação, higiene, descanso, movimento. Quando certas necessidades do corpo não são atendidas, há desordem ou pode haver mesmo ruína prematura.
O funcionamento do corpo encontra paralelismo com o funcionamento de uma sociedade determinada. Logo pode-se usar o corpo físico como símbolo ou imagem do corpo social. Os escritos de Paulo concedem grande importância ao corpo, em especial para falar da ordem e da autoridade.
Paulo faz uso de um conceito de “pureza do corpo”. É preciso ordem e disciplina para haver controle social no grupo. Para Paulo, isto é fundamental para a edificação da comunidade. Imagina-se o corpo como sistema controlado em que “entradas e saídas” estão bem guardadas. Quando não há controle do corpo, a edificação está ameaçada.
Assim como a comunidade precisa “estar em ordem”, o corpo precisa estar puro. Do contrário, surgem ameaças. A fala não controlada. A mulher fora de seu devido lugar. Os escravos quando não servem seus senhores. A idolatria e a própria prostituição de outras religiões em uma grande cidade, onde passam pessoas de todos os tipos e culturas. As relações precisam ser bem estruturadas e institucionalizadas.
Onde há uma noção menos rígida de pureza, existe maior tolerância diante da diversidade e da pluralidade. O fim de ritos e limites baseados num sistema de classificação interna pode trazer oportunidades de relações mais igualitárias.
Um corpo de controle forte é réplica de pressão social.
Relações em que diálogo e tolerância não estão presentes já não são relações de iguais. E sim de inferiores e superiores. Transformam obediência em subordinação. A falta de liberdade se justifica pela necessidade de ordem social e bem comum.
A liberdade de cada indivíduo consiste na responsabilidade de cada pessoa com Deus. Paulo utiliza o conceito de corpo para organizar e estruturar as igrejas cristãs. E é claro que condicionamentos socioculturais de seu tempo, como o sistema patriarcal em que vivia, influenciam seu pensamento. O tipo de sociedade em que Paulo se move é patriarcal e, portanto, hierarquizada. Sua formação rabínica e helenista reflete em sua maneira de conceber ordem na comunidade.
A antropologia de Paulo tem antecedentes nos pensamentos hebreu e grego. Para o pensamento hebreu, a importância não está no corpo por si só, mas na pessoa toda. O ser humano é “ser total”, que se relaciona com Deus. O corpo não é algo que possuímos, e sim somos.
Já na filosofia grega, corpo é separado da alma, o profano separado do sagrado, a terra separada do céu e a mulher inferior ao homem. Aqui onde há multiplicidade, não pode haver unidade. A diferença não pode completar, apenas separar. Cada parte do corpo se contrapõe a suas funções.
Paulo e as pessoas de sua época carregam influências desse pensamento dual. Porém o cristianismo quer mudar isso, converter a degradação do corpo em privilégio. Deus se faz corpo, se faz visível e comunicável porque tem corpo.
O conceito de corpo é uma chave importante na teologia de Paulo e tem relações estreitas com seu desejo de proporcionar uma solução para os problemas sociais, políticos e religiosos da comunidade.
5. Pistas para a pregação
Falamos em corpo. Não existem apenas corpos. Cada corpo é uma pessoa. Convivemos entre pessoas. As pessoas com seus corpos têm suas histórias, suas angústias, seus sonhos. Nossos corpos carregam as marcas de nossa história. Marcas de dor e alegria.
A comunidade – o corpo de Cristo – é formada por pessoas que trazem consigo suas histórias. Cada parte do corpo tem suas marcas. São dores que precisam ser tratadas e saradas na comunhão. São alegrias que partilhadas fortalecem a fé e a esperança. São sonhos que vividos em conjunto tornam-se realidade.
Não há como separar a fé das pessoas de sua vida, não há como separar a vida humana da fé. A vida precisa de fé. Fé se vive. Nossa fé passa por nossos corpos, por nossas necessidades e sonhos. Falamos de fé e vida. A fé de cada pessoa – a vida comunitária.
A vida de cada pessoa reflete na vida da comunidade. O bem-estar de cada parte do corpo determina a saúde da pessoa. Quando as pessoas desanimam, toda a comunidade desanima. A apatia dos membros faz o corpo da comunidade estático. A comunidade só caminha quando todas as suas partes se movimentam e colaboram nesse andar.
As partes do corpo têm suas redes de relações. Os corpos têm suas redes de relações. As pessoas se relacionam, e estes são os grandes marcos que guiam os passos da comunidade e de seus integrantes.
O desafio está em perceber cada pessoa com suas necessidades e capacidades, buscas e ofertas. Cada pessoa é um sujeito importante e imprescindível no sonho e na construção do Reino de Deus. Reino este que se vive em ações concretas na vida da comunidade e no dia-a-dia da vida de cada pessoa, parte dessa comunidade.
6. Subsídios para a celebração
Invocação: Invocamos a presença de Deus Criador, que nos cria à sua imagem e semelhança, que nos cria homem e mulher. A presença de Jesus Cristo Deus, que se faz corpo para aproximar-se de nossa condição humana. E a presença do Espírito Santo, que anima e encoraja nossa vida a cada dia. Amém.
Confissão: Deus de bondade e misericórdia, aproximamo-nos humildemente de ti para pedir perdão. Perdoa-nos, porque tantas vezes nos afastamos de ti, esquecemos a tua vontade e pecamos contra a vida humana. Muitas vezes, valorizamos mais a aparência do que a essência, mais o ter do que o ser, desrespeitamos o corpo humano e o tratamos como objeto de consumo. Assim, ferimos as pessoas e não as respeitamos em suas diferenças e individualidades. Ajuda-nos a perceber que cada pessoa é criada à tua imagem e semelhança e, por isso, merece cuidados e respeito como ser humano “que tem corpo e sentimento”. Isto te pedimos, quando dizemos em conjunto: amém.
Palavra de perdão: “E a palavra se fez corpo e habitou entre nós.” Deus se faz corpo para entrar em comunicação conosco. Jesus Cristo é Deus, que vem ao nosso encontro por amor a nós. A certeza de que Deus nos ama é também a certeza de que Deus nos perdoa quando nos arrependemos sinceramente.
Kyrie: Deus nos ama e nos perdoa. No entanto, o pecado humano deixa marcas de dores e sofrimentos em nosso mundo.
– Lembramos das pessoas doentes que enfrentam em seus corpos a dor e ainda sofrem a humilhação das filas, dos corredores, da falta de atendimento digno em hospitais públicos. Clamamos a Deus cantando: Tem, Senhor, piedade.
– Pelas pessoas que sofrem no corpo com a miséria e a fome, vítimas ainda da exploração e da corrupção humana, clamamos a Deus cantando: Tem, Senhor, piedade.
– Pelas crianças que têm sua infância roubada com trabalho escravo ou trabalhando e vivendo nas ruas, clamamos a Deus cantando: Tem, Senhor, piedade.
Glória: Deus ouve nossas orações, nossos clamores. Deus cria a vida e a mantém. Deus nos cria à sua imagem e semelhança e nos dá dons e capacidades. Através do Santo Espírito, Deus anima e encoraja nossa vida. Por tudo isso queremos glorificá-lo cantando: Glória, Glória…
Oração do dia: Ó Deus da vida! Agradecemos-te por nossa vida, nossos corpos e capacidades. Ajuda-nos a amar uns aos outros com nossas diferenças. Permite que aprendamos com tua palavra e teu exemplo em Jesus Cristo, que amou as pessoas, curou-as e devolveu a elas a dignidade, que é da tua vontade. Isto te pedimos por Jesus Cristo, hoje e sempre. Amém.
Dinâmica para a pregação: Penso que cada obreiro ou obreira pode avaliar sua realidade e pensar na possibilidade de uma dinâmica do corpo. No momento da mensagem pode-se convidar as pessoas da comunidade a olharem para as partes de seu corpo, sentirem seus pés, mexerem as pernas, os braços, usarem ouvidos, olhos etc. Pensarem na função de cada membro do corpo. Imaginarem a falta de alguma parte. Olharem para quem está a seu lado ou especialmente as mãos de quem está ao lado e pensarem na importância dessa pessoa para a comunidade, com suas capacidades e diferenças. Tentarem valorizar cada pessoa da comunidade como parte do corpo de Cristo.
Bibliografia
BAUTISTA, Esperanza. Cuerpo e Comunidad. In: NAVARRO PUERTO, Mercedes (Ed.). Para comprender el cuerpo de la mujer: una perspectiva bíblica y ética. Estella: Verbo Divino, 1996, p. 187-212.
BORTOLINI, José. Como ler a primeira carta aos coríntios. Superar os conflitos em comunidade. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 7-18, 58-60.
FOULKES, Irene. Problemas pastorales en Corinto. Comentario exegetico-pastoral a 1 Corintios. Costa Rica: Editora Dei, 1996, p. 34-54, 341-354.
VOIGT, Gottfried. Gemeinsam Glauben, Hoffen, Lieben. Paulus an die Korinther I. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1989.
Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia