Prédica: Marcos 10.2-12
Leituras: Gênesis 2.18-24 e Hebreus 2.9-11
Autor: Ivoni Richter Reimer
Data Litúrgica: 20º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 26/10/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema: Divórcio
Relendo a reciprocidade do amor entre mulher e homem a partir da realidade do divórcio
1. O espírito da celebração
O texto da pregação deste domingo (Mc 10.2-12) vem acompanhado das leituras bíblicas de Gn 2.18-24 e Hb 2.9-11. Todo o contexto de reflexão está baseado no motivo e na função da criação e da existência humanas. As orações, os hinos devem acentuar isso.
À primeira vista, parece difícil pregar sobre o texto de Mc 10.2-12. Ele trata de um tema polêmico não apenas na época de Jesus, mas ainda nos dias de hoje. Dentro dele encontra-se a fórmula de casamento proferida nas celebrações matrimoniais (10.9). Como pregar sobre um texto assim, se, na maioria de nossas comunidades, existem pessoas divorciadas e que se casaram novamente? Será que o texto proíbe o divórcio? Como trabalhar poimenicamente com base nesse texto?
Olhando o texto mais de perto, percebe-se, em primeiro lugar, que ele não se expressa contra a vivência da sexualidade; ele não desqualifica mulher e homem por causa de seu sexo. Portanto, não é um texto misógino, hostil a mulheres. Ao contrário, trata-se de um texto crítico à prática do divórcio patriarcal que prejudica mulheres dentro de um contexto sócio-histórico-cultural patriarcal, incluindo o casamento. Percebe-se, então, que ele não fala irrestritamente contra o divórcio, mas a partir da prática de divórcios na realidade do primeiro século.
Todo o culto deveria centrar na afirmação da vida conjunta de mulher e homem que constróem e vivem seus projetos na reciprocidade do amor. Ao fazer isto, deve-se ter sensibilidade para projetos conjugais que sofreram separação, o que sempre está ligado com muita dor e reconstrução do sentido da existência, situações que devem ser acompanhadas pastoralmente.
2. Estudando e meditando sobre o texto
Mc 10.2-12 situa-se no contexto literário da segunda parte do Evangelho de Marcos, que fala do caminho e do ministério de Jesus em Jerusalém (8.27-16.8). Fala-se de 8.27-10.52 como o Chamado ao Seguimento à Cruz: é jornada de ensino, de disputas, de confortos. É jornada que prepara a comunidade para o período pós-pascal, que continua vivendo a cruz a partir da experiência da ressurreição. O capítulo 10 enfoca temáticas para a comunidade que deverá testemunhar sua lê, mostrando como ela se diferencia das estruturas do mundo em relação ao casamento (10.2-12), às crianças (10.13-16), ao dinheiro (l 0.17-31) e ao poder (10.32-45). Todos esses temas são críticos num contexto de dominação, em que mulheres, crianças, pessoas pobres e despoderadas sofrem sob a influência e o poder de maridos, pais, ricos e poderosos dentro de uma sociedade hierárquico-patriarcal.
A visualização da perícope através de sua estrutura facilita a com¬preensão temática:
10.2 – Introdução: debate público sobre a legitimidade do divórcio
10.3-5 – Argumento legal para o divórcio
10.6-9 – Argumento criacional contra o divórcio
10.10-12 – Conclusão: diálogo doméstico sobre divórcio e novo casamento
a) Introdução do debate público (10.2)
Depois de 10.1 informar que Jesus estava ensinando as multidões, o v. 2 introduz alguns fariseus. Estes têm o intuito de flagrar Jesus em alguma contradição na sua vivência e relação com a fé e os costumes judaicos. Por isso, perguntam-lhe se é lícito ao homem divorciar-se da sua mulher? O termo técnico usado para divorciar-se é apolyein repudiar, divorciar.
A pergunta é lícito não está questionando a existência do divórcio, mas perguntando pela legitimidade do divórcio. A pergunta dos fariseus é relevante: seu olhar e seu interesse estão centrados no marido. Perguntam se é legal o marido repudiar sua mulher, dar-lhe a carta de divórcio. Isso não significa, como muitas vezes se afirma, que é apenas o homem que pode divorciar-se da mulher (veja 10.11-12). O que aqui transparece é o interesse patriarcal, representado pelos fariseus, de os homens decidirem sobre a vida das mulheres. A pergunta dos fariseus pressupõe que Jesus está familiarizado com a questão.
b) Argumento legal e argumento criacional (10.3-9)
Os argumentos são construídos distintamente, mas interligados. A estrutura torna clara o paralelismo entre as partes:
A 10.3 – Jesus pergunta sobre a lei de Moisés
B 10.4 – Fariseus expõem a lei mosaica que permite o divórcio
C 10.5 – Jesus interpreta essa lei como concessão por causa da dureza do coração
A’ 10.6 – Jesus contra-argumenta com a criação igualitária de homem e mulher Gn 1.27
B’ 10.7-8 – Jesus apresenta e interpreta a união de homem e mulher a partir de Gn 2.24
C’ 10.9 – Jesus conclui contra a separação
Argumento legal (10.3-5)
Jesus reage à pergunta com outra pergunta que fará os debatedores colocarem a sua própria opinião. O primeiro referencial de Jesus e dos fariseus é Moisés. Os fariseus baseiam sua resposta na interpretação de Dt 24.1-4, dizendo que Moisés permitiu fazer a carta de divórcio e se separar da mulher. Para eles, isto basta e legitima as ações de divórcio de maridos contra suas esposas.
Jesus não nega esta base legal (Dt 24.1-4), mas a relativiza, porque entende que foi feita por Moisés por causa da dureza do coração (sklerokardía) dos homens, que não se agradam da mulher, que encontram algo indecente nela (Dt 24.1). Dentro do contexto patriarcal e do interesse androcêntrico, algo indecente pode significar desde o fato de a mulher sair com cabelos soltos pela rua até o adultério. O rabino Hillel diz que pode ser tudo o que o homem quiser, se estiver em seu interesse divorciar-se da mulher (Strack/Billerbeck, p. 312-321). O historiador Josefo (Antiguidades Judaicas IV, 8) interpreta a passagem de Dt 24.1-4 e diz que a prática legal do divórcio acontece por qualquer motivo e acrescenta e tais motivos existem muitos. Essa arbitrariedade dos homens é questionada por Jesus, classificando essa prática como esclerose do coração. Antropologicamente, o coração é o centro das decisões que implicam práticas cotidianas. Se o coração está esclerosado, endurecido, estagnado, então as práticas cotidianas, e dentro delas a construção de relações conjugais justas, estarão distantes do seu objetivo. E é exatamente isto que Jesus quer recordar e trazer à tona, argumentando com os relatos da criação.
O divórcio, como se encontra em Dt 24.1-4, apenas considera a situação do homem; a mulher é objeto de seu julgar e agir; mesmo divorciada, não fica livre da concepção de pecado por causa de sua sexualidade, é considerada contaminada por causa da relação sexual com o segundo marido (Dt 24.4) e, por isso, não poderá retornar ao seu primeiro marido. É diante dessa lei patriarcal, que vê apenas o interesse dos homens, mas não esta interessada na prática da justiça, que Jesus toma partido e busca outros argumentos igualmente escriturísticos.
Na discussão sobre o divórcio, diferente do que na discussão de Me 7, Jesus não contra-argumenta com a mesma base legal de seus companheiros de discussão, mas parece que põe Escritura contra Escritura (Myers, p. 321) e vai preferir a aliança do Gênesis ao estatuto mosaico. Jesus nega-se a entrar num debate legal baseado apenas em Dt 24.1-4 e na tradição oral judaica sobre esta lei. Ao contrário, Jesus questiona profundamente essa forma de lidar com a lei que justifica a prática social do divórcio em prejuízo da mulher, porque essa prática pressupõe a realidade de um casamento patriarcal. Com o divórcio patriarcal, a mulher continua à mercê de outros homens ou é jogada ao vento e fica na rua, na prostituição (Drewermann, p. 90). Jesus quer proteger mulheres diante dessa arbitrariedade dos homens.
Argumento criacional (10.6-8)
Jesus recorre a outra tradição bíblica, que mostra que no princípio não havia a necessidade do divórcio. Ele demonstra que Deus não criou o patriarcado, nem o casamento patriarcal, mas criou homem e mulher para viverem felizes, na reciprocidade do amor. Assim, é nos relatos da criação que Jesus vai nutrir a sua interpretação e a sua prática diante de conflitos sócio-conjugais. Ali, ele encontra suporte para sua posição contra o divórcio patriarcalmente realizado.
No trecho de 10.6-9, portanto, Jesus relativiza ainda mais o princípio da lei patriarcal com o argumento escriturístico da criação igualitária de homem e mulher e a união de ambos para serem uma só carne. Apresenta o argumento que trabalha com a existência de homem e mulher no paraíso. Homem e mulher complementam-se, são companheiro e companheira e não têm vergonha de sua nudez (Gn 2.25). Jesus não trabalha com o pressuposto do pecado, do adultério, nem da subordinação da mulher ao homem.
Conforme a releitura que Jesus faz da criação, o objetivo da união de homem e mulher é que se tornem uma só carne. Isso implica relações sexuais, nas quais tanto o homem quanto a mulher tomam a iniciativa e têm iguais direitos de satisfação, garantidos inclusive pela kethuba, o contrato de casamento judeu. Ser uma só carne, porém, é mais do que isso: é compartilhar de todas as dimensões da vida, ter projetos comuns e concretizações realizadas em conjunto. É construir uma história comum em conjunto desde o sonho, o planejamento, o processo todo de sua realização. Dela fazem parte a festa e o choro, a decepção e o prazer na caminhada. Assim, a proposta de Deus é que homem e mulher realizem-se numa vida humana comum, querida por ambos.
Jesus resgata a reciprocidade do amor de homem e mulher que necessitam do outro e da outra para serem íntegros, seres humanos, completos, e viver a vida como uma dádiva da graça de Deus. Assim, o amor é o único poder que pode nos mostrar a cada dia um pouco do mundo que Deus quer. Por isso, com o argumento no princípio era assim, Jesus nega-se a avaliar questões do amor com argumentos legais, mas conclama à originalidade da existência, ao sentido primeiro querido por Deus. E assim, o texto de Mc 10.2-12 também nos mostra duas formas de valorar, duas maneiras de julgar: uma pela lei em si e outra pelo sentido da reciprocidade no amor que Deus quer para homem e mulher.
Reafirmar a união original (10.9)
Jesus apresenta uma palavra conclusiva a partir do seu argumento criacional. Questionando o casamento e o divórcio patriarcais, e co locando a união originária, recíproca e íntegra do amor entre homem e mulher como referenciais de vida paradisíaca, Jesus conclui: Portanto, o ser humano não deve separar o que Deus uniu. Aqui, Jesus usa o termo chorídzein separar, que não é o termo legal para expressar o divórcio (10.2.4-5). Chorídzein tem mais o sentido de colocar algo entre duas pessoas unidas pelo amor para atrapalhar seu projeto de vida conjunto. Com isso, esta palavra conclusiva de Jesus não deve ser entendida como uma proibição absoluta do divórcio (…). Ele contesta a maneira como a prática patriarcal introduz uma cisão na unidade e na igualdade originalmente articuladas na aliança matrimonial.(Myers, p. 321). Jesus reafirma, assim, a utopia e a concretização da reciprocidade do amor, objetivo da criação de Deus.
c) Conclusão da perícope (10.11-12)
O texto apresenta outro ambiente. Já não se trata de crítica pública à prática patriarcal do divórcio. Jesus e seu grupo encontram-se em casa, onde acontece a instrução da comunidade formada por pessoas discípulas que interrogam Jesus sobre a mesma questão. Jesus argumenta de forma diferente. Ele pressupõe a realidade do divórcio legal (apolyein) para homens e mulheres, e a iniciativa pode partir de ambos. Não se trata mais de uma compreensão patriarcal de divórcio. O conflito, aqui, porém, não é o divórcio, mas o novo casamento. Não há como negar a realidade do divórcio dentro do contexto sócio-cultural judaico e greco-romano. Mas como reconstruir a vida após o divórcio? Isso parece ter sido um grande problema nas primeiras comunidades (veja l Co 7.10-11).
Jesus toma seu argumento do decálogo (sexto mandamento). O ponto de partida é teológico. Não a prática do divórcio, mas casar novamente é considerado adultério. Parece que os primeiros laços não se rompem, que não há lei que apague a história vivida, construída e até sofrida em conjunto, e por isso casar de novo significa trair a primeira união. Na sua interpretação do decálogo, Jesus supera a interpretação legal do divórcio de seus companheiros fariseus, e os questiona na sua prática de novos casamentos: vivem em pecado, pois transgridem o sexto mandamento.
Mas qual é a proposta de Jesus? Em princípio, que homem e mulher possam viver plenamente uma vida comum, na qual o amor é o elemento fundante e realizador da união. Esta vida como no princípio não tem necessidade de divórcio. Estas palavras de Jesus não são universais, mas valem para pessoas que aderiram ao seu projeto, que encontraram o caminho e o sentido como era no princípio e que sabem o que significa estar tão unido com uma pessoa a ponto de nisto poder vivenciar um pedaço do céu na terra, construindo uma relação na qual a outra pessoa se torna o lugar em que todo sentido da existência se reencontra na vivência da graça. São pessoas que aprenderam a viver e a construir um mundo sem medo, sem discriminações e subordinações, assim como era no princípio. Este ideal, porém, é questionado pela realidade que também Jesus conhece: homens e mulheres se divorciam (veja também Lc 16.18; Mt 19,9 modifica o dito, colocando o motivo das relações sexuais ilícitas para o divórcio). E, nesse caso de divórcio, a proposta de Jesus parece indicar que homem e mulher permaneçam sem casar novamente, e se casarem, devem saber que estão cometendo adultério em relação à primeira união.
O estudo do texto esclareceu o seu significado dentro do contexto de Jesus e das comunidades do primeiro século. Hoje, a realidade de divórcio e novo casamento faz parte de nossa cultura e da realidade de nossa igreja. Por isso, quem preside o culto deve ter a sensibilidade poimênica de contemplar membros ou visitantes que estejam nessa situação polemizada pelo texto. Por isso, o culto deve centrar-se no argumento criacional de Jesus e a afirmação da vida conjunta e na reciprocidade do amor entre homem e mulher, que é o objetivo de Deus desde um princípio, buscando construir relações sólidas justas e prazerosas que não necessitem da aplicação da lei do divórcio. Talvez só haja necessidade de leis quando o amor acaba. Além disso, deve-se lembrar a prática de Jesus que colocava o perdão como postura privilegiada, relativizando o cumprimento da lei patriarcal. Afinal, quem não tiver pecado que atire a primeira pedra (Jo 8.1-11).
Bibliografia
DREWERMANN, Eugen. Das Markus Evangelium: Bilder von Erlösung, 3. ed. Olten: Walter, 1990. v. 2.
GNILKA, Joachim. Das Evangelium nach Markus (Mk 8,27-16,20). ed. Zürich: Benziger; Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1989.
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992. FIORENZA, Elisabeth. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. São Paulo: Paulinas, 1992. Principalmente p. 177-179.
SEIBERT-CUADRA, Ute. A mulher nos evangelhos sinóticos. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, v. 15, p. 68-84, 1993.
STRACK, Hermann L.; BILLERBECK, Paul. Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch. 9. ed. München: C. H. Beck, 1989. v. 2.
Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia